Nas
velhas tradições do pensamento budista há uma bela narração a
respeito de um jovem portador de beleza incomparável. Chamava-se
Ananda. Discípulo de Buda, ele amava o mestre e entregara-se à sua
nobre filosofia em caráter de totalidade.
Ananda
era para Buda o que o jovem João representava para Jesus. Sendo um
discípulo abnegado, muitas vezes viajava pelo Sul da Índia levando
a mensagem do samadhi:
a libertação e a vitória sobre a ilusão. Em um dos seus retornos
de viagem, sob o sol ardente, percorrendo uma estrada poeirenta para
ir ao monastério onde estava o mestre, Ananda viu, à sombra
generosa de uma árvore, uma jovem que retirava água de um poço.
Muito
cansado e transpirando em abundância, ele acercou-se da fonte e
solicitou jovialmente à moça, causando-lhe grande espanto:
— Dá-me
de beber!
A jovem
identificou nele as características de um brâmane: o porte, a roupa
específica, a forma de apresentar os cabelos e o sinal colocado no
centro da testa. Muito surpresa com aquela situação, ela respondeu:
— Como
tu me pedes água? Eu sou pária (alguém que não pertencia a
nenhuma das quatro castas)! Não sabes que os párias são a sombra
da fatalidade e possuem as marcas do abandono da Divindade?
O
discípulo sereno redarguiu:
— Não
me importa se a tua é uma condição social marginalizada. Vejo-te
como uma mulher. E as mulheres são anjos que a Divindade coloca na
Terra para tornar menos ásperos os caminhos e menos solitárias as
jornadas. Dá-me de beber!
A jovem
não dispunha de um vasilhame adequado para atender ao pedido:
— Mas
eu não tenho como dar-te a água!
— Dá-me
na concha das tuas mãos! — respondeu o jovem brâmane.
A
mulher, trêmula e desconcertada, mergulhou as mãos no poço e
encheu-as com água, distendendo-as àquele jovem de beleza seráfica,
que se dobrou e sorveu suavemente o líquido, deixando que os seus
lábios tocassem várias vezes as mãos da jovem. Ele agradeceu
sorrindo e completou, com uma voz repassada de ternura:
— Nunca
me esquecerei de ti! Eu sou Ananda.
Ao dizer
isso ele partiu, enquanto a jovem ficou atormentada pelo fogo do
desejo. Tomada por essa angústia, ela recorreu à sua mãe, que
praticava as artes mágicas, na tradicional conceituação da
bruxaria.
— Mamãe,
eu tenho que me casar com esse homem! Ele foi a primeira luz na noite
dos meus desencantos! Tu, que podes dialogar com as sombras,
pede-lhes para que me ofereçam de presente, nesta vida amarga, o
suave canto daquela voz.
A
genitora afirmou, em tom grave:
— Como
tu podes pensar em tê-lo como marido? Ele é discípulo de Buda.
Naturalmente fez votos de abnegação e de castidade, o que
inviabiliza completamente qualquer tentativa de convencê-lo a te
desposar. Ao mesmo tempo, os anjos do Paraíso o assessoram. E não
posso interceder junto aos espíritos para que o desviem da sua
trajetória espiritual.
— Mamãe,
se eu não encontrar novamente esse homem, eu me matarei! Tu és
minha mãe! Acalma meu desespero! Intercede junto às sombras para
que elas o atormentem e o despertem!
Com a
negativa materna, a mulher pária mergulhou em profunda melancolia.
Os dias se passaram e ela estava com o corpo abalado, morrendo aos
poucos, vitimada por um desejo não vivenciado. Foi então que a mãe
resolveu consultar as sombras para satisfazer o pedido pungente de
sua filha. Durante o transe profundo ela percebeu que poderia
deslocar-se em Espírito na direção de Ananda, acompanhada de seres
perversos que a conduziram na tentativa de manipular os pensamentos e
as emoções do discípulo de Buda.
Neste
ínterim, o jovem havia chegado ao monastério. Buda o recebeu com o
seu enigmático sorriso, a sua jovialidade e a sua ternura,
abençoando aquele que se lhe transformara em um verdadeiro filho
espiritual. Por sua vez, Ananda procurou os seus aposentos, atirou-se
no leito, mas não conseguiu dormir. Pela primeira vez ele sentiu que
estranhos personagens que haviam sido sepultados nas águas do Rio
Ganges retornavam de além da cortina da morte para perturbá-lo.
O
discípulo mergulhou na esfera dos sonhos... Sonhou que a jovem pária
apresentava-se vestida de princesa, adornada de joias e exalando odor
de perfumes raros. Ante o som de uma música mística ela dançava
com movimentos sensuais, exibindo uma postura de sedução quase
irresistível.
Lentamente,
à medida que os movimentos faziam-se mais perturbadores e
provocantes, ela se desnudava e se apresentava a seus olhos como a
oferta máxima do prazer. Debateu-se, angustiou-se naquele pesadelo,
enquanto forças estranhas dominavam-lhe o corpo e provocavam-lhe a
emoção.
Buda,
que nesse momento entregava-se à meditação, irradiou a sua aura e
percebeu que seu discípulo estava sob a ameaça das forças
telúricas do invisível, que conseguiam mobilizar no jovem a
tentação da carne, utilizando os vigorosos impulsos da animalidade
que existem em todos nós.
O mestre
deslocou o seu pensamento até o quarto de Ananda e expulsou as
forças negativas, fazendo que se diluíssem sob o sopro da ternura e
da compaixão. O jovem despertou banhado por suor, tremendo e
assustado, detectando as energias protetoras do mestre nos seus
aposentos. A partir desse dia, Ananda penetrou ainda mais no
labirinto das meditações, que poderiam proporcionar-lhe maior soma
de forças para permanecer em paz.
A jovem,
que não havia alcançado os seus objetivos através das artes
mágicas, recorreu novamente à mãe pedindo-lhe uma solução para o
seu drama, já que sua vida perdera o sentido. O seu único
sentimento era o de posse, o desejo irrefreável de ter Ananda ao seu
lado.
Com
sabedoria a mãe ofereceu-lhe uma sugestão:
— Vai
a Buda e ele te dirá alguma coisa sobre como irás obter a tua
felicidade.
A jovem
partiu... Quando chegou ao mosteiro em que o príncipe meditava,
prosternou-se e demorou-se em atitude de reverência, procurando não
interromper a concentração do mestre. No instante em que ele
recobrou a lucidez, ela lhe suplicou:
— Príncipe
Buda, eu amo Ananda! E somente vós possuis o condão de me brindar
com a companhia dele, a joia mais rara que existe na Índia!
— Tu
amas Ananda? — perguntou o mestre.
— Amo,
senhor! Mais do que a mim mesma!
Buda
olhou-a demoradamente e respondeu-lhe com um sorriso:
— Se
tu desejas ter Ananda, deverás pagar o preço do amor. Terás que
ascender até o ponto em que ele se encontra. Porque se tu queres
possuí-lo, é necessário conquistá-lo. Ananda é um homem dedicado
a preocupações transcendentais. E para atingir o patamar em que ele
transita, terás que elevar-te através da meditação.
Ele fez
uma pausa para que a proposta fosse bem assimilada e concluiu:
— Terás
que meditar por duas razões: primeiro, para acalmar o fogo da
paixão; depois, para ser realmente a companheira que ele merece.
— E
por quanto tempo deverei meditar?
— Por
dez anos.
A jovem
ergueu a cabeça e respondeu:
— Por
amor a Ananda, estou disposta!
O mestre
concluiu:
— Então
vai e medita! Busca a Presença Divina, e eu te darei Ananda.
Decidida
a conquistar o amor de Ananda, ela abandonou tudo, despiu-se das
marcas de pária e começou a meditar. Após dez anos de meditação,
ela procurou o iluminado e lhe disse que já havia encontrado um
pouco de paz, mas Ananda não lhe saía da cabeça. Aos seus olhos, a
cada dia o brâmane se apresentava mais viril, mais belo e
encantador.
— Senhor,
creio que estou preparada!
Ao ouvir
o relato, o mestre a contemplou, penetrou-lhe a alma e aconselhou-a:
— É
verdade que estás caminhando de maneira muito proveitosa. Mas
falta-te um pouco mais. Necessitas aprender a renúncia para que te
libertes da ilusão e da ambição. Medita mais e encontrarás a
plenitude que te falta!
— Por
quanto tempo?
— Mais
cinco anos.
A jovem
mergulhou por mais esse período no abismo do insondável... Penetrou
ainda mais no Atman (Alma Universal). E quando emergiu, procurou
novamente o mestre, curvou-se aos seus pés e relatou:
— Agora
estou preparada!
Buda
mandou chamar Ananda e lhe comunicou que aquela era a mulher que a
vida havia preparado para servir-lhe de companheira. A ex-pária
levantou-se, olhou o mestre e seu discípulo com tranquilidade e
declarou para surpresa de todos:
— Eu
já não necessito do corpo de Ananda! Ao encontrar a mim mesma e ao
perceber a presença da Alma Universal, meus planos se modificaram
por completo. Ao haver superado o fogo da ilusão, a paixão
tentadora da posse, atingindo o patamar em que o brâmane se
encontra, eu já não desejo o homem, a materialização de sua
presença física para me preencher, pois eu já o tenho na
intimidade do meu coração!
E depois
de beijar suavemente a mão de Ananda, a jovem saiu na direção do
infinito...
Buda
observou atentamente aquela cena e concluiu:
— A
grande conquista somente é possível por fora quando a alma
conquista a si mesma por dentro.

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