16.3.16

RELATOS DE UM PEREGRINO RUSSO - A ORAÇÃO DE JESUS

PRIMEIRO RELATO: APRENDIZADO DA ORAÇÃO

Pela graça de Deus, sou homem e cristão; pelas ações, grande pecador; por estado, peregrino sem  abrigo, da mais baixa condição, sempre vagando de déu em déu. De meu, tenho às costas uma sacola de pão seco, na minha camisa a santa Bíblia, e eis tudo.

No vigésimo quarto domingo depois da Trindade, eu entrei na igreja para rezar durante o ofício ;  estavam lendo a Epístola do Apóstolo aos Tessalonicenses, na passagem que diz: Rezai sem cessar. Estas palavras penetraram profundamente em meu espírito e eu me perguntei como era possível rezar sem cessar quando cada um de nós tem de ocupar-se de muitos trabalhos para seu próprio sustento. Procurei na Bíblia e li com meus próprios olhos aquilo que ouvira: — É preciso rezar sem cessar (1 Ts 5,17), rezar em todo tempo, no Espírito (Ef 6,18), erguendo em todo lugar mãos santas (l Tm 2,8). Por mais que refletisse, não sabia o que decidir.

— O que fazer? pensava. Onde achar alguém que possa explicar-me essas palavras? Eu irei às igrejas onde pregam homens de renome e aí talvez eu ache o que procuro.

E me pus a caminho. Ouvi belos sermões sobre a oração. Mas todos eles instruíam sobre a oração em geral: o que é a oração, porque é necessário rezar, quais são os frutos da oração. Mas, como chegar a rezar verdadeiramente — sobre isso não falavam nada. Ouvi um sermão sobre a oração em espírito e sobre a oração perpétua, mas não explicavam como chegar até lá. Assim, a freqüência aos sermões não me dera o que eu desejava. Deixei, portanto, de ir às pregações e decidi sair, com a ajuda de Deus, à procura de um homem sábio e experimentado que me explicasse esse mistério, pois era isso que atraía irresistivelmente o meu espírito.

Caminhei por longo tempo. Lia a Bíblia e perguntava se não existia em algum lugar um mestre espiritual ou um guia sábio e cheio de experiência. Disseram-me certa vez que, em uma aldeia, vivia há muito tempo um senhor que se dedicava exclusivamente à sua salvação: tinha uma capela em sua casa, nunca se mexia, rezava sem parar a Deus e lia livros espirituais. Ao ouvir tais palavras, em vez de andar, eu saí correndo em direção à aldeia; lá chegando, fui à casa do tal senhor.

— O que desejas de mim? perguntou ele.
— Eu soube que o senhor é um homem piedoso e sábio; é por isso que lhe peço, em nome de Deus, que me explique o que quer dizer esta palavra do Apóstolo: Rezai sem cessar e como é possível rezar assim. Eis o que quero compreender e, no entanto, não o consigo.

O senhor ficou em silêncio, olhou-me atentamente e disse:
— A oração interior perpétua é o esforço permanente do espírito humano para atingir a Deus. Para ter êxito nesse exercício benfazejo, convém pedir muitas vezes ao Senhor que nos ensine a rezar sem cessar. Reza mais e com maior zelo; a oração por si mesma te fará compreender como ela pode tornar-se perpétua; isso leva muito tempo.

Tendo dito essas palavras, ele mandou dar-me de comer, deu-me alguma coisa para a viagem e me deixou. Mas ele nada tinha explicado.


Retomei meu caminho; eu pensava, lia, refletia como eu podia, sobre o que me dissera o senhor e, entretanto, não conseguia entender. Mas tinha tamanha vontade de entender que não podia dormir à noite. Depois de ter percorrido duzentas verstas , cheguei a uma comarca do governo. Vi que aí havia um mosteiro. Na hospedaria me disseram que nesse mosteiro vivia um superior piedoso, hospitaleiro e caridoso. Fui procurá-lo. Ele me recebeu com bondade, fez-me sentar e me ofereceu comida.

— Meu santo pai, disse eu, não preciso de uma refeição, mas queria que o senhor me desse um ensinamento espiritual: como chegar à salvação?
— Como chegar à salvação? Pois bem! Vive segundo os mandamentos, reza a Deus e tu serás salvo!
— Eu aprendi que é preciso rezar sem cessar, mas não sei como rezar sem cessar, nem posso compreender o que significa a oração perpétua. Eu vos peço, meu pai, que me explique isso.
— Meu irmão, não sei como te explicar melhor. Espera aí! Eu tenho um livrinho que tem tudo isso.

E ele me deu a Instrução espiritual do homem interior, de São Dimitri.
— Toma, lê esta página.

Eu comecei a ler o que se segue: "Estas palavras do Apóstolo: — É preciso rezar sem cessar, se aplicam à oração feita pela inteligência; com efeito, a inteligência pode estar sempre mergulhada em Deus e rezar sem cessar".

— Explicai-me de que maneira a inteligência pode estar sempre mergulhada em Deus, sem distrações, e rezar sem parar.
— Isso é coisa muito difícil, se Deus não conceder esse dom, disse o superior.

Mas, ele não tinha explicado nada. Passei a noite no mosteiro e, agradecendo-lhe de manhã a sua acolhida cordial, retomei meu caminho sem saber bem aonde iria. Eu estava triste por não conseguir compreender e, para me consolar, lia a santa Bíblia. Andei assim pela estrada durante cinco dias.

Finalmente, uma tarde, encontrei um velhinho que parecia ser um religioso. À minha pergunta, ele me respondeu que era um monge e que o mosteiro onde ele vivia com alguns irmãos, ficava a 10 quilômetros da estrada; convidou-me a fazer lá uma parada.

— Em nossa casa, me disse, recebemos os peregrinos, cuidamos deles e lhes damos alimento na hospedaria.

Eu não estava com a mínima vontade de ir até lá e lhe disse:
— Meu descanso não depende de um alojamento, mas de um ensinamento espiritual; não é alimento que estou procurando. Tenho bastante pão seco na minha sacola.
— Mas, que tipo de ensinamento tu procuras e o que é que desejas compreender melhor? Vem, vem conosco, meu irmão! Nós temos monges experimentados que podem dar-te uma orientação espiritual e guiar-te no caminho verdadeiro, à luz da Palavra de Deus e dos ensinamentos  dos Padres .
— Vede, meu pai, faz mais ou menos um ano que, estando no ofício, eu ouvi este mandamento do Apóstolo: — Rezai sem cessar. Não sabendo como entender essas palavras, eu me pus a ler a Bíblia. E nela encontrei, em muitas passagens, o mandamento de Deus: é preciso rezar sem parar, sempre, em todo lugar, em toda ocasião, não somente durante os trabalhos cotidianos, não somente quando acordados, mas também durante o sono: Eu durmo, mas meu coração vigia (Ct 5,2) . Isso me espantou muito e não posso compreender como se pode fazer tal coisa e quais são os meios de chegar lá; um desejo violento e a curiosidade despertaram em mim: de noite e de dia essas palavras não saem mais da minha cabeça. Então comecei a freqüentar as igrejas — ouvi sermões sobre a oração; mas, por mais que eu escutasse sermão e mais sermão, eu nunca aprendi como rezar sem cessar; falavam sempre da preparação para a oração e de seus frutos, sem ensinar como rezar sem parar e o que significa tal oração. Eu li muitas vezes a Bíblia e nela encontrei o que tinha ouvido; entretanto, não consegui compreender o que desejo. E desde então, sinto-me inseguro e inquieto.

Relatos de um Peregrino Russo

O monge fez o sinal-da-cruz e tomou a palavra:
— Agradece a Deus, irmão querido, porque Ele te revelou uma atração invencível em ti para a oração interior perpétua. Reconhece nisso o apelo de Deus e acalma-te pensando que assim a concordância da tua vontade com a palavra divina já foi devidamente provada; foi-te dado compreender que não é a sabedoria do mundo nem um vão desejo de conhecimentos que conduzem à luz celestial — a oração interior perpétua — mas, ao contrário, a pobreza do espírito e a experiência ativa na simplicidade do coração. Por isso, não é de espantar que tu nada tenhas ouvido de mais profundo sobre o ato de rezar e que não tenhas podido aprender como chegar a essa atividade perpétua. Na verdade, prega-se muito sobre a oração e sobre esse assunto há numerosos trabalhos recentes, mas todos os critérios de seus autores se fundamentam sobre a especulação intelectual, sobre os conceitos da razão natural e não sobre a experiência alimentada pela ação; eles falam mais dos acessórios da oração do que de sua própria essência. Um explica muito bem porque é necessário rezar; outro fala do poder e dos efeitos benfazejos da oração; um terceiro, das condições necessárias para rezar bem, isto é, do zelo, da atenção, do calor do coração, da pureza de espírito, da humildade, do arrependimento, que é necessário possuir para se pôr em oração. Mas, o que é a oração e como aprender a rezar — a essas questões, entretanto, essenciais e fundamentais — é raro encontrar uma resposta nos pregadores de nosso tempo; pois são muito mais difíceis que todas as suas explicações e exigem, não um conhecimento escolástico, mas um conhecimento místico. E, coisa mais triste ainda, essa sabedoria elementar e vã conduz a medir a Deus com uma medida humana. Muitos cometem um grande erro quando pensam que os meios de preparação e as boas ações geram a oração, quando na realidade é a oração que é a fonte das boas obras e das virtudes. Eles consideram erroneamente os frutos ou as conseqüências da oração como meios de chegar até ela e assim diminuem a sua força. Trata-se de um ponto de vista completamente oposto à Escritura, pois o Apóstolo Paulo assim fala da oração: Eu vos recomendo antes de tudo rezar (l Tm 2,1). Assim o Apóstolo coloca a oração acima de tudo: Eu vos recomendo antes de tudo rezar. Muitas boas obras são pedidas ao cristão, mas a obra da oração está acima de todas as outras, pois, sem ela, nenhum bem pode ser feito. Sem a oração freqüente, não se pode achar o caminho que conduz ao Senhor, conhecer a Verdade, crucificar a carne com as suas paixões e desejos, ser iluminado no coração pela luz de Cristo e unir-se a Ele na salvação. Eu digo freqüente, pois a perfeição e a correção de nossa prece não dependem de nós, como diz ainda o Apóstolo Paulo: Nós não sabemos o que pedir como convém (Rm 8,26). Somente a freqüência foi deixada em nosso poder como meio de atingir a pureza da oração, que é a mãe de todo bem espiritual. Adquire a mãe e tu terás uma descendência, diz Santo Isaac, o Sírio , ensinando que, em primeiro lugar, é preciso adquirir a oração para poder pôr em prática todas as virtudes. Mas eles conhecem mal essas questões e delas falam pouco, os que não estão familiarizados com a prática e os ensinamentos dos Padres da Igreja.

Conversando dessa maneira, sem perceber, tínhamos chegado ao convento. Para não me separar do sábio ancião e satisfazer mais cedo o meu desejo, apressei-me a dizer-lhe:
— Eu vos peço, venerável pai, explicai-me o que é a oração interior perpétua e como se pode aprender: vejo que tendes dessa oração uma experiência profunda e segura.

O monge acolheu meu pedido com bondade e me convidou a entrar:
— Vem a minha casa, eu te darei um livro dos Padres que permitirá que compreendas claramente o que é a oração e venhas a aprendê-la com a ajuda de Deus.

Entramos em sua cela e o monge me dirigiu as seguintes palavras:
— A interior e constante oração de Jesus é a invocação contínua e ininterrupta do nome de Jesus, com os lábios, com o coração e com a inteligência, no sentimento de sua presença, em todo tempo, em todo lugar, mesmo durante o sono. Essa oração se exprime pelas palavras: — Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! Aquele que se habitua a essa invocação sente uma grande consolação e a necessidade de rezar sempre essa oração; depois de algum tempo, ele não pode passar sem ela e por si mesma a oração brota nele. Compreendes agora o que é a oração perpétua?

— Compreendo perfeitamente, meu pai! Em nome de Deus, ensinai-me agora como chegar até lá - exclamei, cheio de alegria.
— Como se aprende a oração, nós vamos ver neste livro. Chama-se Filocalia . Contém a ciência completa e detalhada da oração interior perpétua, explicada por vinte e cinco Padres; é tão útil e perfeito que é considerado como o guia essencial da vida contemplativa e, como diz o bem aventurado Nicéforo , "ele conduz à salvação sem cansaço nem dor".
— Então ele é mais importante que a santa Bíblia? perguntei.
— Não, não é mais importante nem mais santo que a Bíblia, mas contém explicações luminosas sobre tudo o que ainda parece misterioso na Bíblia, por causa da fraqueza de nosso espírito, cujos olhos não chegam a essas alturas. Eis uma comparação: o sol é um astro majestoso, brilhante e grandioso; mas não se pode olhar para ele a olho nu. Para contemplar o rei dos astros e suportar seus raios inflamados, é preciso usar um vidro artificial, infinitamente menor e mais frágil do que o sol. Pois bem. A Escritura é este sol resplandecente e a Filocalia é o pedaço de vidro. Escuta, agora eu vou ler para ti como se exercer na oração interior perpétua.

O monge abriu a Filocalia, escolheu uma passagem de São Simeão, o Novo Teólogo e começou: "Permanece sentado no silêncio e na solidão, inclina a cabeça, fecha os olhos; respira mais devagar, olha, pela imaginação, para o interior de teu coração, concentra tua inteligência, isto é, teu pensamento, da tua cabeça para teu coração. Dize, ao ritmo da respiração: "Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim", em voz baixa, ou simplesmente em espírito. Esforça-te para afastar todos os pensamentos, sê paciente e repete muitas vezes esse exercício".

Em seguida o monge me explicou tudo isso com exemplos, e nós ainda lemos na Filocalia as palavras de São Gregório, o Sinaita e dos bem-aventurados Calisto e Inácio . Tudo o que nós líamos, o monge me explicava com suas próprias palavras. Eu escutava com atenção e encantamento e me esforçava para fixar todas essas palavras na minha memória com a maior exatidão. Assim passamos a noite inteira e fomos às Matinas sem ter dormido.

O peregrino russo | Vitor Santiago Borges

Ao mandar-me embora, o monge me abençoou e me disse para voltar a falar com ele durante o meu estudo da oração, para confessar-me com franqueza e simplicidade de coração, pois é vão lançar-se à obra espiritual sem um guia.

Na igreja, eu senti um zelo ardente que me levava a estudar cuidadosamente a oração interior perpétua e pedia a Deus que me ajudasse. Depois, pensei que seria difícil ir visitar o monge para me confessar ou pedir-lhe conselho; na hospedaria, não me deixariam ficar mais do que três dias e, perto do convento, não há alojamento... Felizmente, soube que, a quatro quilômetros dali, havia uma aldeia.

Fui até lá para procurar um lugar e, para minha felicidade, Deus me favoreceu. Pude ficar como guardião na casa de um camponês, sob a condição de passar o verão sozinho em uma cabana, no fundo da horta. Graças a Deus, eu tinha encontrado um lugar tranqüilo. Foi assim que comecei a viver e estudar, pelos meios indicados, a oração interior, indo muitas vezes consultar o monge.
 
Durante uma semana, eu me exercitei, na solidão do meu jardim, no estudo da oração interior, seguindo pontualmente os conselhos do monge. No começo, tudo parecia correr bem. Depois eu senti um grande peso, preguiça, aborrecimento, um sono irresistível e os pensamentos caíram sobre mim como nuvens. Fui falar com o monge, cheio de tristeza, e lhe expus o meu estado. Ele me recebeu com bondade e me disse:
— Irmão bem-amado, é a luta que o mundo obscuro está travando contra ti, pois não há nada que o mundo tema tanto como a oração do coração. Ele tenta te atrapalhar e te causar desgosto pela oração. Mas o inimigo só age de acordo com a vontade e a permissão de Deus, na medida em que isso nos é necessário. Sem dúvida, é preciso que tua humildade seja provada: é cedo demais para atingir o fundo do teu coração por um zelo excessivo, pois arriscarias cair na avareza espiritual. Eu vou ler para ti o que diz a Filocalia a esse respeito.

Meu mestre procurou nos ensinamentos do monge Nicéforo e leu:
— "Meu irmão, se, apesar dos teus esforços, tu não consegues entrar no fundo do coração, como te recomendei, faze o que te digo e, com a ajuda de Deus, encontrarás o que procuras. Sabes que a razão do homem está no seu peito... Retira, pois, dessa razão todo pensamento (tu podes fazer isso, se queres), e dá-lhe o "Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim". Esforça-te para substituir por essa invocação interior qualquer outro pensamento e, com o tempo, isso te abrirá certamente o fundo do coração; isso é um fato comprovado pela experiência".

— Vês o que ensinam os Padres nesse caso, disse-me o monge. É por isso que deves aceitar esse mandamento com confiança e recitar a oração de Jesus o mais que puderes. Eis um rosário com o qual poderás, no começo, recitar três mil orações por dia. De pé, sentado, deitado ou andando, diz incessantemente: — Senhor Jesus Cristo, tende piedade de mim! docemente e sem pressa. E recita exatamente três mil orações por dia, sem acrescentar nem diminuir nada. É assim que chegarás à atividade perpétua do coração.

Eu ouvi com alegria essas palavras e voltei para casa. Comecei a fazer exata e fielmente o que ele me tinha ensinado. Durante dois dias, senti certa dificuldade, depois isso se tornou tão fácil que, quando eu não rezava a oração, sentia necessidade de recomeçá-la e ela brotava fácil e suavemente, sem o constrangimento do começo. Contei isso ao monge, que me ordenou de rezar seis mil orações por dia e me disse:
— Fica calmo e esforça-te apenas para manteres fielmente o número de orações que te é prescrito: Deus te fará misericórdia.

Durante a semana inteira, eu permaneci na minha cabana solitária a recitar diariamente minhas seis mil orações, sem me preocupar com mais nada e sem ter de lutar contra os pensamentos; eu procurava apenas observar exatamente a ordem do monge. O que aconteceu? Eu me acostumei tão bem à oração que, se eu parava um instantinho, sentia um vazio como se tivesse perdido alguma coisa. Assim que eu recomeçava a rezar, sentia-me de novo leve e feliz. Se eu encontrava alguém, não tinha mais vontade de falar; queria apenas ficar na minha solidão e recitar a oração, a tal ponto me habituara no fim de uma semana.

O monge que não tinha estado comigo havia dez dias, veio pessoalmente saber de mim. Expliquei-lhe o que estava acontecendo comigo. Depois de me escutar, ele disse:
— Já estás habituado à oração. Vê, é preciso agora conservar esse hábito e fortificá-lo: não percas tempo e, com o auxílio de Deus, toma a resolução de recitar doze mil orações por dia; permanece na solidão, levanta-te um pouco mais cedo, deita-te um pouco mais tarde e vem me visitar duas vezes por mês.

Eu obedeci às suas ordens e, no primeiro dia, quase não consegui recitar minhas doze mil orações que só terminei bem tarde da noite. No dia seguinte, consegui fazê-lo com mais facilidade e com gosto. No começo, senti cansaço, certo endurecimento da minha língua e das minhas maxilas, mas sem nada de desagradável; depois senti o céu-da-boca um pouco dolorido e também o meu dedo polegar da mão esquerda que desfiava o rosário, ao passo que meu braço ficava quente até o cotovelo, produzindo em mim uma deliciosa sensação. Isso me estimulava a rezar ainda melhor. Durante cinco dias, eu cumpri fielmente a tarefa das doze mil orações e assim, ao mesmo tempo, eu adquiri o hábito, o atrativo e o gosto pela oração.

Um dia, bem cedinho, eu acordei, ou melhor, fui acordado pela oração. Comecei a recitar as orações da manhã. Mas minha língua emperrava e eu só tinha vontade de rezar a oração de Jesus. Comecei então a rezá-la. Senti-me logo muito feliz; meus lábios se moviam espontaneamente e sem esforço. Passei o dia todo muito alegre. Eu me sentia como que afastado de tudo e em um outro mundo. 

Acabei minhas doze mil orações sem dificuldade alguma, antes do fim do dia. Eu tinha muita vontade de continuar, mas não ousava ultrapassar o número de orações indicado pelo monge. Nos dias seguintes, continuei a invocar o nome de Jesus Cristo com facilidade e sem me cansar nunca.

Fui visitar o monge e lhe contei tudo, em detalhes. Quando acabei, ele me disse:
— Deus te deu o desejo de rezar e a possibilidade de fazê-lo sem dificuldade. Trata-se de um efeito natural, produzido pelo exercício e pela aplicação constante, da mesma forma que uma máquina: quando se roda a direção, ela continua girando sozinha; mas, para que continue rodando, é preciso colocar óleo e dar-lhe novamente impulso. Agora vês que faculdades maravilhosas nosso Deus, amigo dos homens, deu à natureza humana que é sensível por si mesma; e conheceste as sensações extraordinárias que podem nascer até mesmo em uma alma pecadora, em uma natureza impura que ainda não foi iluminada pela graça. Porém, que grau de perfeição, de alegria e de felicidade não pode o homem atingir quando Deus se digna revelar-lhe a oração espiritual espontânea e purificar sua alma das paixões! É um estado inefável e a revelação desse mistério é uma antecipação das doçuras do céu. É o dom que recebem os que procuram o Senhor na simplicidade de um coração transbordante de amor! Doravante, permito que rezes quantas orações quiseres; experimenta passar todo o tempo da vigília em oração e invoca o nome de Jesus sem precisar contar, entregando-te humildemente à vontade de Deus e esperando no seu auxílio. Ele não te abandonará e dirigirá teu caminho.

Obedecendo a essa regra, eu passei o verão todo a rezar sem parar a oração de Jesus e me senti totalmente tranqüilo. Durante o sono, até sonhava que estava recitando a oração de Jesus. E durante o dia, quando me acontecia de encontrar alguém, todos me pareciam tão amáveis como se fossem da minha própria família. Os meus pensamentos se tinham apaziguado e eu só vivia com a oração.

Inclinava meu espírito a escutar e, às vezes, meu coração sentia como que um calor e uma grande alegria. Quando me acontecia de entrar na igreja, o longo ofício do mosteiro me parecia curto e não me cansava como antes. Minha cabana solitária me parecia um magnífico palácio e eu não sabia como agradecer a Deus o ter mandado para mim, pobre pecador, um monge cujo ensinamento me fazia tanto bem.

Mas, não tive bastante tempo para aproveitar da direção do monge tão querido e sábio — ele morreu no fim do verão. Despedi-me dele com lágrimas, e, agradecendo-lhe seus ensinamentos paternais, pedi-lhe deixar comigo, como uma bênção, o rosário com o qual ele rezava sempre. Assim fiquei sozinho. O verão acabou, recolheram-se todos os frutos do jardim. Eu não tinha mais onde morar. O camponês me deu dois rublos de prata como salário, encheu de pão a minha sacola para a viagem e eu retomei minha vida errante; mas não estava mais tão necessitado como antes: a invocação do nome de Jesus Cristo me alegrava ao longo do caminho e todo mundo me tratava com bondade; parecia que todos gostavam de mim.

Um dia, fiquei me perguntando o que fazer com os rublos que o camponês me tinha dado. Para que me serviriam? Pois bem! Eu não tenho mais o monge nem ninguém para me orientar. Vou comprar uma Filocalia e nela vou aprender a oração interior. Cheguei a uma comarca e comecei a procurar nas lojas uma Filocalia; acabei achando uma, mas o comerciante queria que eu pagasse três rublos e eu só tinha dois. Eu pechinchei o mais que pude, mas ele não quis abaixar o preço. Finalmente me disse:

— Vai até à igreja, pede para o sacristão; ele tem um livro velho como este, que talvez possa ceder-te por dois rublos.

Eu fui até lá e, com efeito, consegui comprar por dois rublos uma Filocalia bem velha e bastante estragada. Fiquei tão feliz! Consertei o livro como pude, com pano, e coloquei-o na minha sacola junto com a Bíblia.

É assim que vou agora, rezando sem parar a oração de Jesus que me é mais doce e querida do que tudo no mundo. Às vezes, faço mais de setenta quilômetros por dia e não sinto que estou caminhando; sinto somente que rezo. Quando me pega um frio muito forte, eu rezo com mais atenção e logo me esquento. Se a fome aperta, eu invoco mais vezes o nome de Jesus Cristo e me esqueço que estava com fome. Se me sinto doente, com dor nas costas ou nas pernas, eu me concentro na oração e não sinto mais dor. Se alguém me ofende, eu só penso na oração de Jesus tão benfazeja; imediatamente desaparecem a raiva ou o sofrimento e me esqueço de tudo. Meu espírito se tornou muito simples. Não me preocupo com nada, não me prendem as coisas exteriores; eu gostaria de ficar sempre na solidão. Por hábito, só tenho agora uma necessidade: recitar a oração sem parar. E quando faço isso, me sinto alegre. Sabe Deus o que se passa comigo. Naturalmente, não são mais do que impressões sensíveis ou, como dizia o monge, o efeito da natureza e de um hábito adquirido; mas ainda não ouso começar a estudar a oração espiritual no interior do coração; eu sou indigno demais e estúpido. Espero a hora de Deus, contando com a proteção do falecido monge, meu mestre. Assim, ainda não cheguei à oração espiritual do coração, espontânea e perpétua; mas, graças a Deus, agora eu compreendo muito bem o que significa a palavra do Apóstolo que eu tinha ouvido faz tempo: "Orai sem cessar".

SEGUNDO RELATO: ATRAVÉS DA SIBÉRIA

A oração de Jesus

Durante muito tempo eu viajei pelos lugares mais diversos, sempre com a oração de Jesus que me fortalecia e consolava ao longo das estradas, em qualquer ocasião, em cada encontro. Finalmente me pareceu que faria bem parar em algum lugar para encontrar maior solidão e estudar a Filocalia que eu só podia ler à noite, nas paradas, ou durante o descanso do meio-dia. Tinha muita vontade de mergulhar longamente nessa leitura para tirar dela, com muita fé, a verdadeira doutrina sobre a salvação da alma pela oração do coração. Infelizmente, para satisfazer esse desejo, eu não conseguia me empregar em nenhum trabalho manual, pois não podia usar o meu braço esquerdo desde minha infância; assim, na impossibilidade de me fixar em algum lugar, dirigi-me às regiões da Sibéria, em direção a Santo Inocêncio de Irkutsk , pensando que, nas florestas e estepes de lá, encontraria mais silêncio e poderia dedicar-me mais facilmente à leitura e à oração. E lá fui eu, recitando sempre a oração.

Ao cabo de certo tempo, senti que a oração por si só passava para meu coração, isto é, que meu coração, ao bater regularmente, ia recitando as santas palavras no ritmo das batidas, por exemplo: 1 — Senhor, 2 — Jesus, 3 — Cristo, e assim por diante. Deixei de murmurar com os lábios e ficava muito atento para escutar o que dizia o meu coração, me lembrando que o monge sempre me dizia como isso era agradável. Depois, senti uma ligeira dor no coração e, no meu espírito, um tal amor por Jesus Cristo que me parecia que, se eu o visse, me lançaria aos seus pés, abraçando-os e lavando-os com minhas lágrimas. E lhe agradeceria o consolo que seu nome nos dá, em sua bondade e seu amor por sua criatura indigna e culpada.

Logo comecei a sentir um calor benfazejo no meu coração que se estendeu por todo o peito. Isso me levou a uma leitura muito atenta da Filocalia para nela verificar essas sensações e estudar como se desenvolve a oração interior do coração. Sem esse controle, eu tinha medo de me iludir, de julgar as ações da natureza como se fossem da graça e de ficar orgulhoso por aprender tão rapidamente a oração, como me havia prevenido o monge. Por isso eu só caminhava à noite e passava o dia lendo a Filocalia, sentado na floresta, embaixo das árvores. Ah! Quantas coisas novas, profundas e ignoradas eu descobri nessa leitura! Assim ocupado, sentia uma felicidade tal, como jamais imaginara até então.

Sem dúvida, algumas passagens do livro eram ainda incompreensíveis ao meu espírito tão limitado, mas os efeitos da oração do coração iluminavam e clareavam o que não compreendia. Além disso, eu via às vezes, em sonhos, meu amigo monge que me explicava as dificuldades e encaminhava cada vez mais para a humildade a minha alma lenta a entender. Passei dois longos meses de verão nessa felicidade perfeita. Eu viajava principalmente através dos bosques e pelos caminhos do campo; quando chegava a uma aldeia, pedia alguns pães, um punhado de sal, enchia de água minha cabaça e partia para mais cem quilômetros.

O peregrino é atacado por ladrões

Certamente por causa de meus pecados ou para o progresso de minha vida espiritual, apareceram as tentações quando o verão já acabava. Eis como: uma noite, quando eu tinha desembocado numa grande estrada, encontrei-me com dois homens com capacetes de soldados. Eles me pediram dinheiro. Quando lhes disse que não tinha um tostão, não quiseram acreditar e gritaram com brutalidade:
— Tu mentes! Os peregrinos arranjam muito dinheiro!

E um deles acrescentou:
— Não adianta nada ficar falando com ele!

E bateu-me na cabeça com seu grosso cajado. Eu caí sem sentidos.
Não sei quanto tempo fiquei lá, mas quando voltei a mim, percebi que estava na floresta, perto da estrada. Eu estava todo rasgado e minha sacola tinha desaparecido. Só restaram pedaços dos barbantes que a amarravam. Graças a Deus, eles não levaram minha carteira de identidade que eu guardava dentro do meu gorro para poder mostrá-la rapidamente, quando era necessário. 

Levantando-me, chorei amargamente, não tanto por causa das pancadas, mas pelos meus livros — a Bíblia e a minha Filocalia — que estavam dentro da sacola roubada. Durante o dia todo e a noite toda, chorei e me lastimei. Onde estaria a minha Bíblia que eu lia desde pequeno e que trazia sempre comigo? Onde estaria a minha Filocalia da qual tirava ensinamentos e consolação? Infeliz de mim! Tinha perdido o único tesouro da minha vida, sem ter podido aproveitar dele até o fim. Seria melhor morrer do que viver assim, sem alimento espiritual. Nunca poderia recuperar meus livros!

Dois dias inteiros, tanto me afligi que nem podia andar direito. No terceiro dia, exausto, caí junto de um arbusto e adormeci. Em sonhos, parecia-me que estava no mosteiro, na cela do monge, meu amigo, e lhe falava, chorando, da minha tristeza. Depois de me consolar, o monge me disse:

— Que isso te sirva de lição de desapego das coisas terrestres para encaminhar-te mais livremente para o céu. Essa provação te foi mandada para que não caias na volúpia espiritual. Deus quer que o cristão renuncie à sua vontade própria e a todo apego por ela, a fim de entregar-se inteiramente à vontade divina. Tudo o que Ele faz é para o bem e a salvação do homem. Ele quer que todos sejam salvos (1 Tm 2,4). Cria coragem, pois, e acredita que, com a tentação, o Senhor vos dará os meios de sair dela e a força para suportá-la (1 Cor 10,13). Logo receberás um consolo maior que tua dor.

Com essas palavras, eu acordei e senti em meu corpo forças novas e na minha alma como que uma aurora e uma tranqüilidade nova. — Seja feita a vontade de Deus! disse. Levantei-me, fiz o sinal-da-cruz e parti. A oração agia no meu coração como antes e assim, durante três dias, caminhei calmamente.

De repente, encontro na estrada uma tropa de homens condenados a trabalhos forçados que eram conduzidos sob escolta. Ao chegar perto deles, reconheci os dois homens que me tinham roubado; como eles marchavam na primeira coluna, atirei-me a seus pés, suplicando que me dissessem onde estavam os meus livros. No começo, fingiram não me reconhecer. Depois, um deles me disse:

— Se nos deres alguma coisa, nós te diremos onde estão teus livros. Tens de nos dar um rublo de prata.

Jurei que lhes daria o dinheiro, de qualquer jeito, nem que tivesse de mendigar para consegui-lo.
— Tomem, se quiserem, minha carteira de identidade como penhor.

Daí eles me disseram que meus livros estavam nos carros juntamente com outros objetos que tinham roubado.
— Como posso obtê-los?
— Pede ao capitão da escolta.

Fui correndo falar com o capitão e lhe expliquei tudo em detalhes. Na conversa, ele me perguntou se eu sabia ler a Bíblia.
— Sei ler, sim, e também sei escrever disse; o senhor verá na capa da Bíblia uma inscrição que mostra que ela me pertence; e eis aqui minha carteira de identidade, com meu nome e sobrenome.

O capitão me disse:
— Esses salteadores são desertores. Viviam em uma cabana e roubavam os que passavam. Um cocheiro esperto conseguiu prendê-los ontem quando tentaram arrebatar-lhe seu grande trenó. Terei sumo prazer em devolver teus livros, se acaso estiverem aí. Mas tens de vir conosco até a próxima parada. Fica a quatro quilômetros somente e eu não posso parar todo o comboio por tua causa.

Fui caminhando, feliz, ao lado do cavalo do capitão e conversava com ele. Vi que se tratava de um homem honesto e bom que já não era muito moço. Ele me perguntou quem era eu, de onde vinha e para onde ia. Respondi-lhe com toda a franqueza. Assim chegamos à casa de pouso. Ele foi procurar meus livros e me devolveu, dizendo:

— Onde queres ir agora? Já é noite. Seria melhor que ficasses comigo.

Eu fiquei. Estava tão feliz por ter recuperado meus livros que não sabia como agradecer a Deus; eu os apertava contra meu peito até me doerem os braços. Chorava de alegria e meu coração vibrava. Olhando para mim, o capitão disse:

— Vejo que gostas de ler a Bíblia!

De tão feliz, eu nem podia falar. Só chorava. Ele continuou:
 — Eu também, meu irmão, leio todos os dias o Evangelho. Assim falando, abriu seu uniforme e tirou de dentro um pequeno Evangelho de Kiev com capa de prata.
— Senta-te aqui e eu te contarei como adquiri esse hábito. Olá! Tragam-nos um jantar!

História do capitão

Sentamos à mesa. O capitão começou a contar:
— Desde minha mocidade, eu sempre servi no exército e nunca em uma guarnição. Eu conhecia bem o serviço e meus chefes me consideravam um modelo. Mas era moço e meus amigos também. Para minha desgraça, aprendi a beber e bebia tanto que fiquei doente. Quando não bebia, era um excelente oficial, mas bastava um copinho de nada e lá ficava eu seis semanas de cama. Durante muito tempo, me suportaram. Mas, um dia, bêbado, insultei meu chefe: fui rebaixado e condenado a servir três anos na guarnição. E se eu não largasse a bebida, pegaria um castigo mais severo ainda. Nessa situação miserável, fiz de tudo para me controlar, para tratar-me; não consegui livrar-me do vício e então decidiram mandar-me para o batalhão da disciplina. Quando me comunicaram a decisão, não sabia mais o que seria de mim.Um dia, estava sentado na caserna e pensava em tudo isso. Apareceu nesse momento um monge que pedia esmola para a igreja. Cada um dava o que podia. Chegando perto de mim, perguntou-me: — Por que estás tão triste? Conversei um pouco com ele e lhe contei minha desgraça. O monge, condoído com minha infelicidade, me disse:

— A mesma coisa aconteceu ao meu próprio irmão e escuta como ele saiu dessa: seu mestre espiritual lhe deu um Evangelho e ordenou-lhe que lesse um capítulo cada vez que tivesse vontade de beber. E se a vontade voltasse, ele devia ler o capítulo seguinte. Meu irmão pôs em prática o conselho e, em pouco tempo, o vício da bebida o deixou. Já faz quinze anos e nunca mais tomou bebida forte. Faze tu o mesmo e logo verás o benefício. Eu tenho um Evangelho; se quiseres, vou buscá-lo para ti.

A essas palavras, eu lhe disse:
— Que queres que eu faça de teu Evangelho, quando nem meus esforços, nem os remédios puderam me corrigir? (Eu falava assim porque nunca tinha lido o Evangelho).
— Não digas isso, respondeu o monge. Garanto que aproveitarás.

No dia seguinte, com efeito, o monge me trouxe este Evangelho que está aqui. Eu abri, olhei, li algumas frases e lhe disse:
— Não quero saber disso; não compreendo nada. Não estou habituado a ler esses caracteres eclesiásticos.

O monge continuou a aconselhar-me, dizendo que as palavras do Evangelho tinham uma força benfazeja; pois foi o próprio Deus que falou aquelas palavras que ali estão impressas.
— Não faz mal que não entendas. Lê apenas com atenção. Um santo já disse: — Se não compreendes a palavra de Deus, os demônios compreendem o que tu lês e tremem (Tg 2,19). E certamente o desejo de beber é obra dos demônios. Digo-te ainda isto: João Crisóstomo escreve que até a casa onde está guardado o Evangelho assusta os espíritos das trevas e se torna um obstáculo a suas intrigas.

Eu não me lembro bem — parece-me que dei alguma coisa ao monge — peguei o seu Evangelho e o enfiei no baú com minhas coisas. E o esqueci completamente. Algum tempo depois, chegou a hora de beber. Estava louco de vontade. Abri meu baú para pegar o dinheiro e correr ao botequim. Meus olhos bateram no Evangelho e me lembrei de tudo o que tinha dito o monge. Abri e comecei a ler o primeiro capítulo de Mateus. Li até o fim, sem compreender nada; mas me lembrei das explicações do monge:

— Não faz mal se nada compreendes. Lê com atenção.

Então disse com meus botões: — Pois bem! Vamos tentar mais um capítulo.
E a leitura então me pareceu mais compreensível.
— Vejamos o terceiro capítulo, pensei.

Nem tinha começado a ler ainda, quando tocou um sinal: era o toque da noite. Eu não podia mais sair da caserna. Assim, fiquei sem beber. No dia seguinte, quando ia sair para buscar aguardente, disse comigo mesmo:
— E se eu lesse um capítulo do Evangelho? Vamos ver.

Eu o li e não arredei pé. Uma outra vez, senti vontade de tomar bebida alcoólica, mas comecei a ler e me senti aliviado. Fiquei muito reconfortado e assim, cada vez que me dava vontade de beber, eu atacava um capítulo do Evangelho. Quanto mais o tempo passava, mais certo ia dando. Quando terminei os quatro Evangelhos, meu vício pela bebida tinha desaparecido completamente; eu me tornara de gelo a esse respeito. E veja só: faz exatamente vinte anos que nunca mais tomei bebidas fortes.

Todo mundo se admirou com a minha mudança. Depois de três anos, fui readmitido no corpo de oficiais, fui promovido e cheguei a capitão. Casei-me com uma mulher excelente. Juntamos algumas posses e agora, com a graça de Deus, estamos bem. Ajudamos aos pobres como podemos e acolhemos os peregrinos. Tenho um filho que já é oficial, é um rapaz ótimo.

Pois bem, saibas tu que, depois de minha cura completa, prometi a mim mesmo que, durante minha vida inteira, eu leria cada dia um dos quatro Evangelhos inteiro, sem admitir impedimento algum. É assim que faço. Quando tenho trabalho demais e fico muito cansado, eu me deito e peço à minha mulher, ou ao meu filho, que leiam o Evangelho para mim; assim cumpro a regra. Em testemunho de gratidão e para a glória de Deus, mandei recobrir de prata este Evangelho e eu o guardo sempre sobre meu coração.

Eu escutava com prazer a história do capitão e lhe disse:
— Conheci um caso semelhante: em nossa aldeia, na fábrica, existia um excelente operário, que conhecia muito bem seu ofício. Mas, por desgraça, ele vivia sempre bêbado. Um homem piedoso aconselhou-o que, cada vez que tivesse vontade de beber aguardente, recitasse trinta e três orações de Jesus em honra da Santíssima Trindade e dos anos de vida terrestre de Jesus Cristo. Foi o que ele fez e logo deixou de beber. E isso não é tudo. Três anos depois, entrou em um mosteiro.
— E o que será que vale mais — perguntou o capitão — a oração de Jesus ou o Evangelho?
— É a mesma coisa, respondi. O Evangelho é como a oração de Jesus, pois o nome divino de Jesus Cristo traz em si todas as verdades evangélicas. Os Padres dizem que a oração de Jesus é o resumo de todo o Evangelho.

Em seguida, nós dois rezamos as orações; o capitão começou a ler desde o início do Evangelho de São Marcos e eu o escutei fazendo a oração do coração. Às duas horas da manhã, ele terminou a leitura e nós fomos dormir.

Conforme meu costume, levantei-me cedo; todos dormiam; apenas raiou o dia, eu mergulhei na leitura da minha querida Filocalia. Com que alegria eu a abri! Parecia-me que tinha reencontrado meu pai depois de longa ausência ou um amigo, ressuscitado dos mortos. Abracei meu livro e agradeci a Deus o tê-lo de volta. Comecei a ler Teolepto de Filadélfia na segunda parte da Filocalia. Fiquei espantado ao ver que ele se propõe dedicar-se, ao mesmo tempo, a três atividades diferentes: — Sentado à mesa, diz ele, dá ao teu corpo o alimento, à tua mente a leitura, e ao teu coração a oração.

Entretanto, a lembrança da noite passada tão proveitosa me explicava praticamente esse pensamento. Foi então que descobri a diferença entre o coração e a mente.

Quando o capitão se levantou, fui agradecer-lhe a sua bondade e me despedir. Ele me serviu chá, me deu um rublo de prata e então nos separamos. Retomei meu caminho repleto de alegria.

Ao fim da primeira versta, eu me lembrei que tinha prometido aos soldados um rublo — que eu agora possuía. Seria preciso entregar-lhes a moeda, ou não? — De um lado, pensava eu, eles te bateram e te roubaram e como estão presos, nada podem fazer contra ti. Mas, de outro lado, lembra-te do que diz a Bíblia: Se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer (Rm 12,20). E o próprio Jesus Cristo diz: — Amai os vossos inimigos (Mt 5,44) e ainda: — Se alguém quer tomar-te a túnica, deixa-lhe também a veste (Mt 5,40). Assim persuadido, voltei atrás e cheguei à casa de pouso no momento em que o comboio estava se formando para partir: corri até os dois malfeitores e lhes entreguei meu rublo, dizendo:

— Rezem e façam penitência; Jesus Cristo é amigo dos homens. Ele não os abandonará!

Com essas palavras, afastei-me e retomei a estrada em outra direção.

Solidão orante

Depois de ter andado cinqüenta verstas pela larga estrada, enveredei por caminhos do campo, mais solitários e mais propícios à leitura. Andava pelos bosques durante muito tempo; às vezes, encontrava uma pequena aldeia. Freqüentemente me detinha na floresta o dia inteiro, lendo a Filocalia. Nela eu encontrava ensinamentos extraordinários e profundos. Meu coração se inflamava de desejo de unir-se a Deus pela oração interior que eu me esforçava para estudar e aprender na Filocalia; ao mesmo tempo, estava triste por não encontrar um abrigo onde pudesse me dedicar à leitura em paz e sem interrupção.

Nessa época, eu também lia minha Bíblia e sentia que já começava a compreendê-la melhor; nela poucas passagens obscuras encontrava agora. Os Padres têm razão em dizer que a Filocalia é a chave que descobre os mistérios escondidos na Escritura. Guiado por ela, eu já começava a compreender o sentido oculto da Palavra de Deus; descobria o que significa: o homem interior, no fundo de seu coração (1 Pd 3,4), a oração verdadeira, a adoração em espírito (Jo 4,23), o Reino dentro de nós (Lc 17,21), a intercessão do Espírito Santo (Rm 8,26). Compreendia o sentido das frases: Vós estais em mim (Jo 15,4), dá-me teu coração (Pr 23,26), ser revestido de Cristo (Rm 13,14), o noivado do Espírito em nossos corações (Ap 22,17), a invocação: Abba! Pai! (Rm 8,15-16), e muitas outras.

Quando, ao mesmo tempo, eu orava no fundo do coração, tudo o que me cercava tinha aspecto encantador: as árvores, as plantas, os passarinhos, a terra, o ar, a luz; tudo parecia dizer-me que eles existem por causa do homem, que testemunham o amor de Deus pelo homem; tudo rezava, tudo cantava louvores a Deus! Eu compreendia assim aquilo que a Filocalia chama de "conhecimento da linguagem da criação" e via como era possível conversar com as criaturas de Deus.

História de um guarda florestal

Viajei assim por muito tempo. Finalmente, cheguei a uma região tão perdida que passei três dias sem ver aldeia alguma. Meu pão tinha acabado e me perguntava, aflito, como não morrer de fome. Logo que comecei a rezar em meu coração, minha aflição desapareceu: entreguei-me à vontade de Deus, fiquei contente e tranqüilo, Eu penetrava, pela estrada, através de uma imensa floresta, quando notei, na minha frente, um cão de guarda que saía de lá. Chamei-o e ele veio, bonzinho, para que eu o agradasse. Alegrei-me e disse:

— Eis a bondade de Deus! — há certamente um rebanho nesta floresta e este é o cão do pastor, ou, talvez, de um caçador que anda atrás de caça por aqui. De qualquer jeito, eu posso pedir pão, pois faz dois dias que não como. Posso também me informar se não existe alguma aldeia nas redondezas.

O cachorro ficou me rodeando, mas, vendo que não havia nada para comer, fugiu para a floresta pela mesma senda por onde viera até à estrada. Eu o segui. Duzentos metros mais adiante, eu vi, através das árvores, o cão bem instalado numa toca: punha a cabeça para fora e latia.

Eu vi que se aproximava, por entre as árvores, um camponês magro e pálido, de meia idade. Perguntou-me como eu tinha chegado até aí. Eu lhe perguntei o que fazia nesse lugar longínquo. E trocamos palavras de amizade. O camponês me convidou a entrar na sua cabana e me explicou que era guarda florestal e tomava conta dessa floresta que deveria mais tarde ser derrubada. 

Ofereceu-me pão e sal e conversamos bastante.
— Eu te invejo essa vida solitária que levas, lhe disse eu. Não és como eu, sempre errante, e em contato com todo mundo que passa.
— Se tu desejas, me disse ele, podes muito bem viver aqui. Existe mais além uma cabana velha que serviu ao antigo guarda. Está um pouco destruída, mas dá para se arranjar no verão. Tens uma carteira de identidade. Há pão suficiente para nós dois. Eles me trazem pão da aldeia, uma vez por semana. E aqui há um riacho que nunca pára de correr. Quanto a mim, irmão, só me alimento de pão e água há dez anos. Só que, no outono, quando terminarem os trabalhos do campo, vão chegar duzentos homens para abater a floresta. Então nada mais terei a fazer aqui e eles não permitirão que continues na cabana.

A essas palavras, senti tal alegria que quase me lancei a seus pés. Não sabia como agradecer a Deus a sua bondade para comigo.

E foi assim que, de repente, consegui tudo que desejava e que me causava tanta preocupação. Até meados do outono, tenho ainda quatro meses e vou poder aproveitar, durante esse tempo, do silêncio e da paz para estudar a oração perpétua no interior do coração, com a ajuda da Filocalia. E me instalei na cabana que ele me indicara. Continuamos a conversar, e esse irmão me falou de sua vida e suas idéias.

— Na minha aldeia, disse, eu não era um João Ninguém. Tinha uma profissão: tingia os tecidos de vermelho e azul. Vivia livremente, mas não sem pecado. Eu enganava bastante meus fregueses e jurava à toa. Era grosseiro, beberrão e briguento.

Vivia na aldeia um velho cantador que tinha um livro muito antigo sobre o Juízo Final . Ele ia freqüentemente à casa dos fiéis ortodoxos para ler esse livro. Davam-lhe sempre algum dinheiro. Ia também à minha casa. Geralmente ele recebia dez tostões e ficava lendo até o galo cantar. Uma vez, fiquei trabalhando enquanto ouvia sua leitura. Ele lia uma passagem sobre os tormentos do inferno e a ressurreição dos mortos: como Deus virá para julgar, como os Anjos tocarão as trombetas; como haverá fogo e piche e como os vermes vão devorar os pecadores.

De repente, fiquei morrendo de medo e disse a mim mesmo: — Não vou escapar desses tormentos! Ora veja! Vou tratar de salvar a minha alma e talvez consiga pagar os meus pecados.

Refleti bastante e resolvi largar minha profissão. Vendi minha casa e, como eu vivia sozinho, me tornei guarda florestal, pedindo apenas como salário: pão, roupa e velas para acender durante minhas orações.

Já faz mais de dez anos que vivo aqui. Só como uma vez por dia e apenas pão e água. À noite, me levanto quando o galo canta e até o dia raiar faço minhas genuflexões e inclinações até o chão. Quando rezo, acendo sete velas diante das imagens. Durante o dia, enquanto percorro a floresta, carrego no corpo cadeias muito pesadas. Não juro, não bebo nem cerveja nem álcool, não brigo com ninguém. Jamais tive relações com mulheres ou moças.

No começo eu até estava contente com essa vida, mas forçosamente me assaltam pensamentos que não consigo evitar. Sabe Deus se vou pagar os meus pecados, mas esta vida é bem dura. Além disso, será verdade tudo o que o livro descrevia? Como pode o homem ressuscitar? Os que morrem há cem anos ou mais, até sua poeira desapareceu. E quem sabe se o inferno existe mesmo, ou não? Em todo caso, nunca alguém voltou do outro mundo; quando o homem morre, apodrece e dele nada resta. Esse livro talvez tenha sido escrito pelos clérigos ou funcionários para nos meter medo, a nós, os imbecis, e para que sejamos mais submissos. Desse jeito, vivemos penosamente e sem consolo nesta terra e, no outro mundo, nada existirá! Então, para quê? Não será melhor aproveitar da vida desde já?
— Essas idéias me perseguem, disse ele, e tenho medo de acabar voltando para minha antiga profissão.

Eu estava com dó dele e me dizia: — Acham que somente os sábios e os intelectuais se tornam livres pensadores sem acreditar mais em nada! Entretanto, como nossos irmãos camponeses, tão simples, se tornam incrédulos! Certamente o mundo das trevas se acerca de todos e ataca mais facilmente ainda as pessoas simples. É preciso raciocinar o mais possível e fortificar-se contra o inimigo pela Palavra de Deus.

Assim, para amparar a esse irmão e fortalecer a sua fé, tirei da sacola a Filocalia e abri no capítulo 109 do bem-aventurado Hesíquio. Li para ele e lhe expliquei que somente o medo do castigo não nos impede de pecar, pois a alma só consegue libertar-se dos pensamentos pecaminosos pela vigilância do espírito e pela pureza do coração. Tudo isso adquirimos pela oração interior. Se alguém se lança na via ascética, não somente de medo dos tormentos do inferno, mas também por desejo do Reino do Céu, acrescentei, sua ação é comparada pelos Padres à de um mercenário. Dizem que o medo dos tormentos é o caminho dos escravos e o desejo da recompensa é o caminho dos mercenários. Mas Deus quer que cheguemos a Ele como filhos. Quer que o amor e o zelo nos levem a nos conduzir dignamente e que gozemos da união perfeita com Ele na alma e no coração.

— Em vão te cansarás, te imporás privações e os mais duros castigos físicos; se não tiveres sempre Deus em tua mente e a oração de Jesus em teu coração, jamais estarás livre dos maus pensamentos; estarás disposto a pecar à menor ocasião. Portanto, meu irmão, que te ponhas logo a recitar incessantemente a oração de Jesus. Neste lugar retirado, isso te é fácil. Logo sentirás o proveito. Desaparecerão as idéias contra a fé, e te serão revelados o amor por Jesus Cristo e a fé verdadeira. Tu vais entender como os mortos podem ressuscitar e o Juízo Final vai te parecer o que é realmente. Teu coração se sentirá tão leve e contente que ficarás admirado; não mais ficarás cansado ou perturbado por tua vida de penitência!

Em seguida expliquei-lhe o melhor possível como recitar a oração de Jesus conforme o mandamento divino e o ensinamento dos Padres da Igreja. Ele parecia não querer outra coisa e sua inquietação diminuiu. Então, separando-me dele, entrei na velha cabana que ele me havia mostrado.

Trabalhos espirituais

— Meu Deus! Que alegria, que consolação, que arrebatamento eu senti ao penetrar nesse recinto, ou melhor dizendo, nesse túmulo. Parecia-me um lindo palácio, cheio de alegrias e eu me disse: — Pois bem! Agora, nesta calma e neste silêncio, é preciso trabalhar seriamente e pedir ao Senhor que me esclareça o espírito. Comecei a ler a Filocalia do começo ao fim com muita atenção. Em pouco tempo terminei minha leitura e me dei conta da sabedoria, profundidade e santidade desse livro. Mas, como trata de numerosos assuntos, eu não podia compreender tudo nem concentrar as forças de minha mente apenas no ensinamento da oração interior a fim de atingir a oração espontânea e perpétua no interior do coração. Entretanto, tinha uma vontade louca de lá chegar de acordo com o mandamento divino transmitido pelo Apóstolo: Aspirai aos dons mais altos (1 Cor 12,31) e também: Não extingais o Espírito (l Ts 5,19). Por mais que refletisse, eu não sabia o que fazer. Não tenho bastante inteligência nem compreensão e ninguém para me ajudar. Vou aborrecer o Senhor de tanto rezar e talvez Ele queira esclarecer meu espírito. Passei então um dia inteiro rezando sem parar um instante; meus pensamentos se acalmaram e eu adormeci. Eis que, no sonho, me vejo na cela do monge meu amigo e ele me explica a Filocalia, dizendo:

— Este santo livro está cheio de sabedoria. É um misterioso tesouro de ensinamentos sobre os desígnios secretos de Deus. Não é acessível em qualquer trecho e a qualquer pessoa. Contém lições na medida de cada um: profundas para os espíritos profundos e simples para os espíritos simples. É por isso que pessoas simples como tu não devem ler os livros dos Padres na seqüência em que estão colocados aqui. Trata-se de uma disposição de acordo com a teologia. Mas aquele que não é instruído e deseja aprender a oração interior na Filocalia, deve lê-la na seguinte ordem: 1 — em primeiro lugar, ler o livro do monge Nicéforo (na 2ª parte); 2 — o livro de Gregório, o Sinaita, inteiro, exceto os capítulos pequenos; 3 — as três formas de oração de Simeão, o Novo Teólogo, e seu tratado da Fé; 4 — o livro de Calisto e Inácio. Nesses textos, acha-se o ensinamento completo da oração interior do coração, ao alcance de cada um. Se queres um texto ainda mais compreensível, toma o modelo abreviado de oração de Calisto, patriarca de Constantinopla, na quarta parte.

Tendo a Filocalia quase em mãos, eu procurava o trecho indicado sem conseguir achá-lo. Virando algumas páginas, o monge me disse: — Olha aqui! Vou marcar para ti! E, pegando no chão um pedaço de carvão, fez um traço ao lado da página indicando qual era a passagem. Eu escutei com atenção as palavras do monge e procurei fixá-las em minha memória firmemente e em detalhes.

Acordei, e como ainda não tinha clareado o dia, fiquei deitado, lembrando tudo o que tinha visto em sonhos e repetindo o que o monge me tinha dito. Depois comecei a refletir: — Deus sabe se é a alma do meu monge falecido que me aparece assim ou se são minhas próprias idéias que tomam essa forma, pois eu penso demais na Filocalia e no monge!

Levantei-me nessa incerteza de espírito; o dia clareava. De repente, vejo, sobre a pedra que me servia de mesa, a Filocalia aberta na página indicada pelo monge e marcada com um risco de carvão, exatamente como no meu sonho. E o carvão ainda estava ao lado do livro. Fiquei espantado porque me lembrava bem que o livro não estava naquele lugar, na véspera. Antes de dormir, eu o tinha colocado, fechado, perto de mim e me lembrava de que não tinha nenhuma marca naquela página. 

Esse fato me fez acreditar na verdade da aparição e me tranqüilizou a respeito da santidade da memória do monge. Assim recomecei a ler a Filocalia na ordem indicada. Li uma vez, depois mais uma e essa leitura inflamou meu zelo e meu desejo de comprovar em atos tudo o que tinha lido. Descobri com clareza o sentido da oração interior, os meios de chegar a ela e os seus efeitos; compreendi como essa oração alegra a alma e o coração e como se pode distinguir se essa felicidade vem de Deus, da natureza sadia ou da ilusão.

Antes de qualquer coisa, procurei descobrir o lugar do coração, conforme o ensinamento de São Simeão, o Novo Teólogo. Fechando os olhos, dirigi meu olhar para o coração, tentando imaginá-lo do jeito que ele está no lado esquerdo do peito e escutando com atenção as suas batidas. Pratiquei esse exercício no começo por meia hora, várias vezes por dia. As primeiras vezes, eu só via escuridão; logo apareceu meu coração e eu senti seu movimento em profundidade. Em seguida, consegui introduzir no meu coração a oração de Jesus e fazê-la sair no ritmo da respiração, como ensinam São Gregório, o Sinaita, Calisto e Inácio. Para isso, eu inspirava o ar e o conservava no peito, dizendo: — Senhor Jesus Cristo, e o soltava, dizendo: tende piedade de mim.

Primeiro me exercitei durante uma ou duas horas, e depois me apliquei cada vez com maior freqüência a esse exercício; finalmente, passava assim quase o dia todo. Quando me sentia entorpecido, cansado ou inquieto, lia imediatamente na Filocalia os trechos que tratam da atividade do coração, e daí o desejo e o zelo pela oração renasciam em mim.

Ao cabo de três semanas, senti uma dor no coração, depois uma sensação agradável, um sentimento de paz e consolação. Isso me deu forças para continuar a me exercitar na oração à qual se prendiam todos os meus pensamentos e começava a sentir uma grande alegria. A partir desse momento, experimentava, por vezes, diversas sensações novas no coração e no espírito.

Às vezes, era como que um ardor e leveza, uma liberdade e alegria tão grandes que me transformava e me sentia em êxtase. Outras vezes, sentia um amor ardente por Jesus Cristo e por toda a criação divina. Acontecia também de me correrem lágrimas de gratidão para com o Senhor que tinha tido piedade de mim, pecador endurecido. Meu espírito limitado às vezes se iluminava de tal forma que eu compreendia com clareza o que antigamente nem poderia conceber. Outras vezes esse doce calor do coração se espalhava por todo meu ser e eu sentia a presença inefável do Senhor. Sentia ainda uma alegria forte e profunda ao invocar o nome de Jesus Cristo e então compreendia o que significa a expressão: — O Reino de Deus está dentro de vós (Lc 17,21).

Em meio a essas consolações benfazejas, eu notei que os efeitos da oração do coração se manifestavam de três maneiras: no espírito, nos sentidos e na inteligência. No espírito, por exemplo, a doçura do amor de Deus, a calma interior, o arrebatamento do espírito, a pureza dos pensamentos, o esplendor da idéia de Deus; nos sentidos, o agradável calor do coração, a plenitude de doçura nos membros, a exaltação de alegria no coração, a leveza, o vigor da vida, a insensibilidade às doenças e dores; na inteligência, a iluminação da razão, a compreensão da santa Escritura, o conhecimento da linguagem da criação, o desapego das vãs preocupações, a consciência da doçura da vida interior, a certeza da proximidade de Deus e de seu amor por nós .

Depois de cinco meses solitários nesses trabalhos e nessa felicidade, me habituei tanto à oração do coração que a praticava sem cessar e no fim sentia que essa oração se fazia por si só, sem atividade alguma de minha parte. Ela brotava no meu espírito e no meu coração, não somente em estado de vigília, mas mesmo durante o sono e não se interrompia um minuto sequer. Minha alma agradecia ao Senhor e meu coração exultava de uma alegria incessante.

Chegou o tempo de derrubar a floresta. Os lenhadores se reuniram e eu tive de deixar minha morada silenciosa. Agradecendo ao guarda florestal e tendo recitado uma oração, eu beijei esse pedaço de terra onde Deus quis me manifestar sua bondade. Pus nos ombros a minha sacola e parti. Caminhei durante muito tempo e passei por muitas regiões antes de chegar a Irkutsk. A oração espontânea do coração foi meu consolo ao longo do caminho; nunca deixou de me alegrar, ainda que em graus diversos. Não me atrapalhou em lugar algum e em nenhum momento. Nada poderá enfraquecê-la jamais. Se estiver trabalhando, a oração age por si só no meu coração e meu trabalho rende mais; se estiver escutando ou lendo alguma coisa com atenção, a oração não pára e eu sinto ambas as coisas como se tivesse me desdobrado em dois ou como, se no meu corpo, houvesse duas almas. Meu Deus! Como o homem é misterioso!

Ataque do lobo

Ó Senhor, quão variadas são as vossas obras: tudo fizestes com sabedoria! (Sl 104, 24). Ao longo do meu caminho, encontrei casos espantosos. Se eu fosse contar todos esses casos, não acabaria tão cedo. Por exemplo: uma noite de inverno, atravessei sozinho uma floresta: queria dormir a dois quilômetros de lá, numa aldeia que tinha avistado. De repente, um enorme lobo pulou em cima de mim. Eu estava segurando na mão o rosário de lã do monge, meu mestre (eu o trazia sempre comigo). Afastei o lobo com ele. É de se acreditar? O rosário escapou de minha mão e se enroscou no pescoço do animal. O lobo se jogou para trás e pulou os espinheiros. Suas patas traseiras se prenderam nos espinhos enquanto o rosário se enganchou em um ramo de árvore morta. O lobo se debatia com todas suas forças, mas não conseguia soltar-se, porque o rosário lhe apertava a garganta.

Eu me persignei com fé e me aproximei para desvencilhar o lobo. Foi principalmente porque temia que ele arrebentasse o meu rosário e fugisse levando esse objeto tão precioso para mim. Assim que cheguei perto e peguei no rosário, o lobo arrebentou-o de fato e fugiu sem mais delongas. Assim, agradecendo ao Senhor e honrando a memória do bem-aventurado monge, cheguei sem mais contratempos à aldeia. Fui à hospedaria e pedi para dormir. Entrei na casa. No canto, à mesa, achavam-se sentados dois viajantes: um já idoso, o outro de meia-idade e corpulento. Tomavam chá.

Perguntei ao camponês que guardava os cavalos quem eram eles. Explicou-me que o velho era um professor e o outro, escrivão do juiz de paz, ambos de origem nobre:
— Eu os estou levando à feira, a vinte quilômetros daqui.

Depois de descansar um pouco, pedi à hospedeira uma agulha e uma linha. Aproximei-me da vela e comecei a consertar o meu rosário. O escrivão deu uma olhadela em minha direção e disse:
— Tu andaste fazendo muitas reverências para rasgares teu rosário desse jeito!
— Não fui eu que o estraguei, mas um lobo...
— Ora veja só! Os lobos também dizem suas orações, respondeu o escrivão, dando risadas.

Contei-lhe o acontecido detalhadamente e expliquei o quanto esse rosário era precioso para mim. O escrivão recomeçou a rir e disse:
— Para os crédulos, sempre acontecem milagres! O que há de misterioso nesse episódio? Tu jogaste alguma coisa em cima dele; o lobo se assustou e fugiu. Os cães e os lobos têm medo dessas coisas, e se enroscar nos galhos da floresta, isso não é difícil. Não é preciso acreditar que tudo o que acontece neste mundo é por milagre.

Daí o professor começou a discutir com ele:
— Não fale assim, meu senhor! Não entende do assunto... Quanto a mim, vejo na história desse camponês um duplo mistério, sensível e espiritual...
— Como assim? perguntou o escrivão.
— Veja: sem possuir uma instrução muito adiantada, o senhor assim mesmo estudou a história sagrada através de perguntas e respostas, em livro editado para as escolas. Deve lembrar-se de que, quando o primeiro homem, Adão, estava em estado de inocência, todos os animais lhe eram submissos. Aproximavam-se dele receosos e ele lhes dava os nomes. O monge ao qual pertencia esse rosário, era um santo. E o que é a santidade? Nada mais que a ressurreição, no homem pecador, do estado de inocência do primeiro homem, graças aos esforços e virtudes. A alma santifica o corpo. O rosário estava sempre nas mãos de um santo; logo, pelo contato constante com seu corpo, esse objeto foi tocado por uma força santa, a força do estado de inocência do primeiro homem. Eis o mistério da natureza espiritual! Essa força, naturalmente, todos os animais a sentem, principalmente pelo olfato, pois as narinas são o órgão principal dos sentidos para o animal. Eis o mistério da natureza sensível...

— Para os senhores, os sábios, só existem forças e histórias desse gênero; mas nós vemos as coisas de uma maneira mais simples: encher um copo e dar um trago, eis o que dá forças, disse o escrivão.

 E se dirigiu para o armário.
— O problema é seu, respondeu o professor, mas neste caso, deixe-nos com nossos conhecimentos mais sábios.

As palavras do professor me agradaram; aproximei-me dele e lhe disse:
— Permita que lhe conte ainda certas coisas a respeito do meu mestre.

Então lhe expliquei como ele me tinha aparecido em sonhos e, depois de me ter ensinado, tinha deixado uma marca na minha Filocalia. O professor escutou o relato com atenção. Mas o escrivão, recostado em um banco, resmungava:
— É verdade que a gente acaba louca de tanto ficar fuçando na Bíblia. Basta olhar para esse aí! Que louco iria sujar teus livros à noite? Tu deixaste cair teu livro no chão, enquanto dormias, e ele rolou pelas cinzas ... É esse o teu milagre! Ora, esses vagabundos: eu os conheço, meu velho, esses da tua confraria!

Depois de ter resmungado desse jeito, o escrivão virou-se para a parede e adormeceu.
Ao ouvir tais palavras, inclinei-me para o professor e disse:
— Se quiser, eu lhe mostrarei o livro que tem a marca e não manchas de cinza.
Tirei a Filocalia da minha sacola e mostrei-a a ele, dizendo:
— Muito me espanta que uma alma incorpórea possa pegar um carvão e escrever...

O professor olhou bem o sinal de carvão no livro e disse:
— Este é o mistério dos espíritos. Vou te explicar. Quando os espíritos aparecem a um homem, sob uma forma corporal, seu corpo visível é feito de luz e de ar, com os elementos dos quais tinha sido tirado seu corpo mortal. E como o ar tem elasticidade, a alma dele revestida pode agir, escrever ou pegar objetos. Mas, que livro tens aí? Deixa-me ver.

Ele o abriu exatamente na página do discurso e do tratado de Simeão, o Novo Teólogo.
— Ah! Sem dúvida, trata-se de um livro de teologia, eu não o conheço...
— Esse livro, meu senhor, contém quase somente os ensinamentos sobre a oração interior do coração em nome de Jesus Cristo; tudo está explicado aqui, em detalhes, por vinte e cinco dos Padres da Igreja.
— Ah! a oração interior! Eu sei o que é, disse o professor...

Inclinei-me junto dele e lhe pedi para me dizer alguma coisa sobre a oração interior.

— Pois bem. No Novo Testamento se diz que o homem e toda a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. Foi submetido à vaidade, não por seu querer — na esperança de ela também ser liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus (Rm 8,19-20). Esse movimento misterioso da criação, esse desejo inato das almas, isto é a oração interior. Ela não pode ser aprendida, pois está em todos e em tudo!...
— Mas, como adquirir essa oração interior, descobri-la e experimentá-la dentro do coração? Como tomar consciência da oração e acolhê-la voluntariamente, conseguir que a oração possa agir ativamente, alegrando, iluminando e salvando a alma? perguntei eu.
— Não sei se os tratados de teologia falam da oração interior, respondeu o professor.
— Mas, aqui, aqui tudo está escrito! Exclamei.

O professor pegou um lápis, anotou o título da Filocalia e disse:
— Eu vou encomendar esse livro em Tobolsk e vou examinar tudo isso. E assim nos separamos.

Fui embora e agradeci a Deus toda essa conversa com o professor e pedi a Deus que permitisse um dia ao escrivão ler a Filocalia e compreender seus ensinamentos para o bem de sua alma.

A moça da aldeia

Uma outra vez, na primavera, cheguei a um povoado e parei na casa do vigário. Era um homem excelente que morava sozinho. Fiquei aí três dias com ele. Depois de me ter observado durante esse tempo, ele me disse:
— Fica comigo, eu te darei um salário. Estou precisando de um homem com quem possa contar. Reparaste que estão construindo uma nova igreja, de pedras, perto da antiga, que é de madeira. Não estou achando uma pessoa conscienciosa para vigiar os operários e permanecer na capela a fim de receber os donativos para a construção. Vejo que és um homem capaz e que essa vida te seria conveniente. Ficarias sozinho na capela, rezando a Deus. Existe lá um cômodo isolado onde se pode ficar. Fica, eu te peço, pelo menos até que a igreja fique pronta.

Recusei bastante tempo, mas acabei por ceder ao pedido insistente do vigário. Fiquei então desde o verão até o outono e me instalei na capela. No começo, tive muito sossego e pude me exercitar na oração. Mas, principalmente nos dias de festa, aparecia muita gente: uns para rezar, outros para cochilar, outros ainda para passar a mão nas moedas que ficavam na bandeja. E como, às vezes, eu ficava lendo a Bíblia ou a Filocalia, alguns dos visitantes puxavam prosa comigo e outros me pediam para ler um pouco para eles.

Depois de algum tempo, eu notei que uma moça do lugar vinha freqüentemente à capela e ficava aí bastante tempo a rezar. Prestei atenção ao que ela murmurava e descobri que eram orações estranhas, algumas completamente estropiadas. Eu lhe perguntei: — Quem te ensinou a rezar assim? Ela me disse que tinha sido sua mãe que era ortodoxa, ao passo que seu pai era cismático , da seita dos sem-sacerdotes. Achei triste essa situação e lhe aconselhei que recitasse corretamente as orações, conforme a tradição da santa Igreja. Ensinei-lhe o Pai-Nosso ea Ave Maria. Depois lhe disse: 

— Reza principalmente a oração de Jesus. Ela nos aproxima de Deus mais que todas as orações e com ela conseguirás a salvação de tua alma.

A moça me ouviu com atenção e fez simplesmente como eu tinha aconselhado. E... acreditais? Algum tempo depois ela me anunciou que já se tinha habituado à oração de Jesus e que sentia vontade de repetir essa oração sem parar, se possível; quando rezava, sentia uma sensação agradável e, finalmente, alegria, assim como o desejo de rezar mais. Rejubilei-me com isso e lhe aconselhei que continuasse rezando cada vez mais, invocando o Nome de Jesus Cristo.

Já estava acabando o verão. Muitos visitantes da capela vinham procurar-me, não somente para pedir um conselho ou um pouco de leitura, mas também para contar seus problemas caseiros e até para saber o que fazer para achar objetos perdidos. Era evidente que alguns pensavam que eu era um feiticeiro. Um dia finalmente a moça veio procurar-me, muito infeliz, para perguntar o que devia fazer. Seu pai queria que ela, contra sua vontade, se casasse com um cismático como ele e o celebrante do casamento fosse um simples camponês.

— Então isso é um casamento conforme a lei? exclamava ela. Isso é um deboche! Eu quero fugir para qualquer lugar!

Eu lhe disse:
— Para onde queres fugir? Logo te acharão. Nos tempos de hoje, não poderás te esconder em lugar algum sem documentos. Facilmente te encontrarão. É melhor rezar a Deus com zelo para que, por seus caminhos, Ele quebre essa decisão de teu pai e guarde tua alma do pecado e da heresia. É melhor do que fugir!

O tempo passava: o barulho e as distrações iam se tornando cada vez mais penosos para mim. Enfim, acabou-se o verão. Decidi abandonar a capela e retomar meu caminho como antes. Fui falar com o vigário e lhe disse:

— Padre, o senhor conhece as minhas disposições. Eu preciso de calma para dedicar-me à oração e aqui só encontro perturbações e distrações. Cumpri o que o senhor me pediu, fiquei aqui durante todo esse longo verão. Agora, por favor, deixe-me ir e queira abençoar o meu caminho solitário.

O vigário não queria me largar e me pressionou com um sermão:
— O que te pode impedir de rezar aqui ? Nada tens a fazer senão ficar na capela e sempre receber teu pão. Se tu queres, podes ficar rezando noite e dia. Vive com Deus! Aqui és competente e útil, não falas bobagens com os visitantes, és honesto e fiel, e asseguras contribuições para a igreja de Deus. Isso é melhor aos olhos de Deus do que tua oração solitária. Por que ficar sempre a sós? Com outras pessoas, é mais alegre a gente rezar. Deus não criou o homem para que ele conhecesse somente a si próprio, mas para que cada um ajude a seu próximo, uns levando os outros à salvação, cada um conforme suas possibilidades. Olhe os santos e os doutores ecumênicos: eles estavam sempre em movimento, dia e noite, preocupados com a Igreja. Pregavam em todo lugar e não ficavam retirados,  escondidos de seus irmãos.

— Cada um recebe de Deus o dom que lhe convém, padre. Muitos pregaram às multidões e muitos viveram na solidão. Cada qual agia conforme sua inclinação e achava que era esse o caminho da salvação, indicado pelo próprio Deus. Mas, como me explicais que tantos santos tenham abandonado todas as dignidades e honras da Igreja e se tenham retirado no deserto para não serem tentados no mundo? Santo Isaac, o Sírio, abandonou assim seus fiéis e o bem-aventurado Atanásio, o Atônita, deixou seu mosteiro. Eles consideravam esses lugares como sedutores demais e acreditavam verdadeiramente na palavra de Jesus Cristo: — Que aproveitará ao homem, se ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida? (Mt 16,26)

— Mas eles eram grandes santos, retorquiu o vigário.
— Se os santos se preservavam com tanto cuidado do contacto com os homens, respondi, o que não deve fazer um pobre pecador!

Enfim, disse adeus ao bom vigário e nos separamos afetuosamente.

Ao cabo de dez quilômetros, parei para passar a noite em uma aldeia. Havia aí um camponês às portas da morte. Eu aconselhei sua família a fazer com que recebesse os Santos Mistérios de Cristo e, de manhã, eles mandaram buscar o padre da vila. Eu fiquei para reverenciar as santas Espécies e rezar durante esse grande sacramento. Eu estava sentado em um banco na frente da casa, à espera do padre. De repente, vejo encaminhar-se para mim aquela jovem que eu tinha visto rezando na capela.

— Como chegaste até aqui? disse-lhe eu.
— Na minha casa, tudo estava preparado para eu me casar com aquele cismático. Então fugi.

E se lançando aos meus pés, ela suplicou:
— Oh, por piedade, me toma contigo e me leva a um convento: eu não quero me casar, quero viver no convento recitando a oração de Jesus. Eles te escutarão e me receberão.
— Ora veja, disse eu, onde queres que te leve? Não conheço nenhum convento por aqui e como te levar comigo sem documento de identidade? Não poderias parar em nenhum lugar. Logo te descobrirão. Serás levada de volta à tua casa e castigada por vagabundagem. É melhor que voltes para tua casa e rezes a Deus. E se não queres casar-te, finge que tens alguma incapacidade. Isso se chama um piedoso fingimento; foi assim que agiram a santa mãe de Clemente, a bem-aventurada Marina, que se salvou em um mosteiro de homens, e assim muitos outros.

Enquanto assim conversávamos, vimos quatro camponeses em uma carruagem que corria em nossa direção. Eles agarraram a moça, a colocaram na carroça e a despacharam em companhia de um deles. Os outros três homens me amarraram as mãos e me levaram para a aldeia onde eu tinha passado o verão. A todas minhas tentativas de explicação, eles respondiam gritando:

— Tudo bem, santo de pau oco, vamos te ensinar a seduzir donzelas!

À tarde, me levaram à prisão, me puseram correntes nos pés e me fecharam na cela para ser julgado no dia seguinte. O padre, ao saber que eu estava preso, veio visitar-me. Trouxe-me um jantar, consolou-me e disse que ele assumiria a minha defesa e, como confessor, ia declarar que eu não tinha as más tendências que me atribuíam. Ele ficou um pouco comigo e foi-se embora.

Ao cair da noite, o juiz da província passou por lá. Contaram-lhe o acontecido. Ele mandou convocar a assembléia do município e levar-me a julgamento. Entramos e ficamos em pé, esperando. Nisso entrou o juiz, já muito animado; sentou-se à mesa, sem tirar o chapéu, e gritou:
— Então, Epifânio, essa jovem, tua filha, não levou nada de casa?
— Nada, meu senhor!
— Ela não fez alguma bobagem com esse idiota?
— Não, meu senhor!
— Então, o caso está julgado e nós decidimos: com tua filha, arranja-te como quiseres. Quanto a esse sujeito, nós o mandaremos embora amanhã, depois de o termos castigado exemplarmente para que nunca mais ponha os pés aqui. Caso encerrado!

A essas palavras, sem nada mais acrescentar, o juiz se levantou e se recolheu. Quanto a mim, levaram-me para a cadeia. No dia seguinte bem cedo, vieram dois agentes da polícia rural que me chicotearam e então fui solto. Fui-me embora agradecendo ao Senhor que tinha permitido que eu sofresse por causa de seu nome. Isso me consolava e me estimulava mais ainda à oração.

Todos esses acontecimentos não me deixaram, porém, desgostoso. Era como se dissessem respeito a uma outra pessoa e que eu tivesse sido apenas um espectador. Mesmo enquanto me fustigavam, eu conseguia suportar: a oração que me alegrava o coração, não me deixava prestar atenção a outra coisa.

Depois de quatro quilômetros, encontrei a mãe daquela jovem que voltava do mercado. Ela parou e disse-me:
— O noivo nos abandonou. Ele se zangou com Akulka , veja só, porque ela fugiu de casa.

Ela me deu um pão e um bolo e eu retomei meu caminho.
O tempo estava seco e eu não estava com vontade de dormir em uma aldeia. Avistei, na floresta, dois montes de feno e aí me instalei para passar a noite. Dormi e comecei a sonhar que ia caminhando pela estrada, lendo os capítulos de Santo Antão, o Grande , na Filocalia. De repente, aquele monge, meu mestre, veio ao meu encontro e me disse: — Não é esse trecho que deves ler!

E ele me indicou o capítulo 35 de João de Cárpatos no qual está escrito: — Às vezes, o discípulo é desonrado e suporta provações por aqueles que ele ajudou espiritualmente. E me mostrou ainda o capítulo 41 onde se diz: — Todos os que se dedicam com ardor à oração, estão sujeitos a tentações terríveis e arrasadoras.

Em seguida, ele me disse:
— Coragem! Não te deixes abater! Lembra-te das palavras do Apóstolo: — Aquele que está em vós, é maior do que aquele que está no mundo (1 Jo 4,4). Agora conheceste pela experiência que não há tentação acima das forças do homem. Com a tentação Deus vos dará os meios de suportá-la e sairdes dela (1 Cor 10,13). Foi a esperança na ajuda do Senhor que sustentou os santos que, não somente passaram a vida a rezar, mas ainda, por amor, procuraram ensinar e esclarecer os outros. Eis o que diz a esse respeito São Gregório de Tessalônica : "Não nos é suficiente rezar sem cessar, conforme o mandamento divino, mas é necessário que saibamos expor esse ensinamento a todos: monges, leigos, inteligentes ou simples, homens, mulheres e crianças, a fim de despertar neles o zelo pela oração interior". O bem-aventurado Calisto Telicudas se exprime da mesma maneira: "A atividade espiritual (isto é, a oração interior)", diz ele, "o conhecimento contemplativo e os meios para elevar a alma não devem ser guardados só para si mesmo, mas é preciso comunicá-los por escrito ou por palavras para o bem e o amor de todos. E a palavra de Deus declara que um irmão, apoiado por outro irmão, é como uma cidade fortificada (Pr 18,19). É preciso apenas fugir da vaidade a qualquer custo e cuidar que a boa semente do ensinamento divino não seja levada pelo vento".

Ao acordar, senti no coração uma grande alegria e, na minha alma, uma força nova. E continuei meu caminho.

Curas maravilhosas

Muito tempo depois tive mais uma aventura. Se o senhor quiser, eu vou contar.
Certo dia — era dia 24 de março — eu senti uma necessidade irresistível de comungar nos Santos Mistérios de Cristo no dia consagrado à Mãe de Deus, em memória de sua Anunciação. Perguntei se havia alguma igreja por lá. Disseram-me que havia uma a trinta quilômetros.
Caminhei o resto do dia e a noite inteira para chegar à hora das Matinas. O tempo estava muito ruim, ora neve, ora chuva e ainda um vento forte e o frio. A estrada atravessava um riacho: apenas dei alguns passos e o gelo se quebrou sob meus pés. Caí na água até à cintura. Cheguei ensopado às Matinas que eu acompanhei, assim como a missa, durante a qual Deus me permitiu comungar.

Para passar esse dia em paz, sem nada que perturbasse minha alegria espiritual, pedi ao guarda que me deixasse ficar até o dia seguinte, na guarita. Passei o dia todo numa alegria indescritível e com paz no coração. Estava espichado num banco, em um lugar não aquecido, como se estivesse repousando no seio de Abraão: a oração agia com força. O amor por Jesus Cristo e pela Mãe de Deus inundava meu coração em ondas benfazejas e fazia minha alma mergulhar em êxtase consolador. Ao anoitecer, senti de repente uma dor violenta nas pernas e me lembrei que estavam molhadas. Mas, afastando essa distração, mergulhei de novo na oração e não senti mais a dor. De manhã, quando quis me levantar, não conseguia mexer as pernas. Elas estavam sem força e tão moles quanto as tiras de um chicote. O guarda me arrastou para debaixo do banco e assim fiquei durante dois dias, sem me mexer. 

No terceiro dia, o guarda me expulsou de lá, dizendo: — Se tu morreres aqui, ainda terei o trabalho de correr e ocupar-me de ti.

Eu consegui me arrastar com as mãos até a escadaria da igreja, onde permaneci deitado. Aí fiquei uns dois dias. As pessoas que passavam, não prestavam a mínima atenção, nem a mim nem aos meus pedidos.

Finalmente, um camponês aproximou-se de mim e puxou prosa. Depois de algum tempo, ele disse: — O que me darás tu? Eu vou curar-te. Eu tive exatamente a mesma coisa e conheço um remédio.
— Nada tenho para te dar, lhe respondi eu.
— E o que tens aí na sacola?
— Nada, a não ser pão seco e livros.
— Pois bem, trabalharás para mim durante um verão, se eu te curar.
— Eu também não posso trabalhar: vês que só tenho um braço válido.
— Então, o que sabes fazer?
— Nada, senão ler e escrever.
— Ah! Escrever! Então ensinarás meu filho a escrever; ele já sabe ler um pouco e eu gostaria que ele escrevesse. Mas os professores cobram caro: vinte rublos para ensinar toda a escrita.

Combinei tudo com ele e, com a ajuda do guarda, me transportaram para a casa do camponês, onde me colocaram num velho quarto de banhos, no fundo do quintal.

Ele começou então a me tratar: recolheu, nos campos, nos quintais e buracos de lixo, uma grande quantidade de velhos ossos de animais, e de pássaros de toda espécie. Lavou esses ossos, esfacelou-os com uma pedra e os colocou numa grande panela. Tapou-a com uma tampa que tinha um buraco e virou-a em cima de um vaso que tinha enfiado na terra. Recobriu com cuidado o fundo da panela com uma camada espessa de terra argilosa e pôs em cima achas de lenha que deixou queimar por mais de vinte e quatro horas. Ao revirar as achas, ele dizia: — Tudo isso vai fazer um alcatrão de ossos.

No dia seguinte, ele desenterrou a panela que, pelo buraco da tampa, tinha deixado escorrer quase um litro de um líquido avermelhado, oleoso, cheirando a carne fresca. Os ossos que ficaram na panela, de escuros e apodrecidos que estavam, tinham agora uma cor tão branca e transparente como o nácar ou as pérolas. Cinco vezes por dia eu friccionava minhas pernas com esse líquido. E... acreditais? No dia seguinte, senti que podia mexer os dedos. No terceiro dia, podia dobrar as pernas e, no quinto dia, eu já ficava em pé e caminhava no quintal, apoiado num bordão. Em uma semana, minhas pernas tinham voltado ao normal. Eu agradecia a Deus e dizia comigo mesmo: — A sabedoria de Deus aparece nas criaturas! Ossos desencarnados e apodrecidos, quase devolvidos à terra, conservam ainda uma força vital, uma cor e um cheiro. E exercem uma ação sobre os corpos vivos aos quais podem restituir a vida! É um penhor da Ressurreição futura.

Se eu pudesse dar conhecimento disso àquele guarda florestal em cuja cabana eu vivi e que duvidava da ressurreição dos corpos!

Assim curado, comecei a ocupar-me do menino. Escrevi como modelo a oração de Jesus e fiz com que ele a copiasse, mostrando-lhe como fazer uma letra bonita. Para mim, era muito repousante, porque ele trabalhava durante o dia na casa do intendente e só vinha procurar-me quando ele dormia, isto é, de manhã bem cedinho. O menino era esperto e logo já escrevia quase corretamente.

O intendente, vendo-o escrever, perguntou-lhe:
— Quem te está ensinando a escrever? O menino disse que era um peregrino manco que vivia em casa deles, no velho quarto de banhos. O intendente curioso — era polonês — veio ver-me e encontrou-me lendo a Filocalia. Conversou um pouco comigo e disse:
— O que estás lendo? Mostrei-lhe o livro.
— Ah! Éa Filocalia, disse ele. Eu vi esse livro na casa do vigário quando eu morava em Vilna. Mas ouvi dizer que esse livro contém receitas estranhas e métodos de oração inventados pelos monges gregos, a exemplo dos fanáticos da Índia e de Boukhara, que enchem seus pulmões e acreditam tolamente, quando sentem um pouco de cócegas no coração, que esta sensação natural é uma oração concedida por Deus. É preciso rezar simplesmente para cumprir sua obrigação para com Deus. Ao levantar, deve-se recitar o Pai-Nosso como Jesus Cristo ensinou. E isso basta para o dia todo. Mas, de tanto repetir o tempo todo a mesma coisa, corre-se o risco de enlouquecer e viciar o coração.

— Não fale assim desse santo livro, meu senhor. Não foram simples monges gregos que o escreveram, mas santos e antigos personagens que a vossa Igreja também venera, como Antônio, o Grande; Macário, o Grande ; Marcos, o Asceta ; João Crisóstomo e outros. Os monges da Índia e de Boukhara tomaram emprestada deles a técnica da oração do coração, mas eles a desfiguraram e deturparam, conforme me explicou meu amigo monge. Na Filocalia, todos os ensinamentos sobre a oração interior são tirados da Palavra divina, da Bíblia, na qual Jesus Cristo, além de ordenar que se recite o Pai-Nosso, também afirmou que era necessário rezar sem cessar, dizendo: — Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e de todo o teu espírito (Mt 22,37); orai e vigiai (Mc 13,33); permanecei em mim e Eu permanecerei em vós (Jo 15,4). E os Santos Padres, citando o testemunho do rei Davi nos salmos: Provai e vede como o Senhor é bom (Sl 34,9), o interpretam dizendo que o cristão deve fazer tudo para conhecer a doçura da oração, deve procurar incessantemente a consolação na oração e não se contentar em apenas recitar o Pai-Nosso uma vez por dia. Veja, eu vou ler para o senhor o que os Padres da Igreja dizem daqueles que nem tentam estudar a oração do coração, tão benfazeja. Declaram que cometem um pecado triplo porque: 1° — se colocam em contradição com as santas Escrituras; 2° — não admitem que exista para a alma um estado superior e perfeito: contentando-se com as virtudes exteriores, eles ignoram a fome e a sede de justiça e se privam da beatitude em Deus; 3° — considerando suas virtudes exteriores, eles caem no
contentamento de si próprios e na vaidade.

— Lês aí algo de muito elevado, disse o intendente; mas, de que jeito, nós, os leigos, poderíamos seguir uma tal via?
— Veja, vou ler para o senhor de que maneira os homens de bem, apesar de leigos, puderam aprender a oração incessante.

 Tomei na Filocalia o tratado de Simeão, o Novo Teólogo, sobre o jovem Jorge e pus-me a ler.

Essa leitura agradou ao intendente e ele me disse:
— Dá-me esse livro que eu vou ler nas minhas horas livres.
— Se o senhor quiser, eu lhe emprestarei por um dia apenas, não mais que isso, pois estou sempre lendo e não posso ficar sem esse livro.
— Mas tu podes, pelo menos, copiar-me esse trecho, eu te pagarei.
— Não preciso do seu dinheiro, mas vou copiar com gosto, esperando que Deus lhe dê o zelo pela oração.

Copiei imediatamente o trecho que tinha lido. Ele leu para sua mulher e ambos acharam muito bonito. A partir desse dia, eles mandavam buscar-me, uma vez ou outra. Eu ia com a Filocalia; enquanto eu lia, eles tomavam chá. Um dia, fizeram questão que eu ficasse para jantar. A mulher dele, uma senhora idosa e muito amável, estava conosco à mesa e comia peixe frito. De repente, ela engoliu uma espinha. 

Apesar de todos os nossos esforços, não conseguimos livrá-la da espinha. Ela sentia muita dor na garganta e, depois de duas horas, foi deitar-se. Mandaram buscar o médico a trinta quilômetros de lá e eu voltei para casa muito penalizado.

Durante a noite, enquanto dormia um sono leve, eu ouvi subitamente a voz do meu mestre, embora não visse ninguém. A voz me dizia:
— Teu patrão te curou e tu nada podes fazer pela mulher do intendente? Deus nos ordenou de partilhar as dores do próximo.
— Eu ajudarei com muito gosto, mas como? Não conheço remédio algum,
— Eis o que deves fazer: ela sempre teve horror a óleo de rícino. Basta o cheiro para ela sentir náuseas. Por isso tu lhe darás uma colherada de óleo de rícino: ela vai vomitar e o espinho sairá. O óleo aliviará o ferimento de sua garganta e ela vai ficar boa.
— E como vou conseguir que ela beba o óleo de rícino se ela o detesta?
— Pede ao intendente que segure a cabeça da senhora e tu derramarás o líquido, à força, em sua garganta.

Acordei e fui correndo à casa do intendente, a quem contei tudo detalhadamente. Ele me disse:

— Para que adiantará esse óleo? Ela já está com febre e delirando. A garganta está inchada. Mas, de fato, sempre se pode tentar: se o óleo não fizer bem, mal também não há de fazer.

Ele despejou o óleo de rícino num vidrinho e conseguimos que ela o tomasse. Imediatamente, vomitou e cuspiu a espinha com um pouco de sangue; sentiu-se melhor e logo adormeceu profundamente.

No dia seguinte, cedo, eu fui saber notícias dela; já estava tomando chá com seu marido. Ambos estavam muito admirados com sua cura e de saber que, em sonhos, me tinham avisado de seu horror pelo óleo de rícino, porque eles nunca tinham comentado isso com ninguém. Nisso chegou o médico. O intendente lhe contou como a mulher tinha sido curada e eu também lhe expliquei de que maneira o camponês tinha curado as minhas pernas. O médico declarou:

— Esses dois casos não são surpreendentes: foi uma força da natureza que agiu as duas vezes. Mas vou anotá-los para guardar na memória.

Ele tirou um lápis do bolso e escreveu algumas anotações em uma caderneta.

Logo se espalhou o boato de que eu era um adivinho, um curandeiro e um mágico. De todo lado vinham me ver para consultar-me; traziam-me presentes e começavam a venerar-me como a um santo. Passada uma semana, pus-me a pensar nisso tudo e fiquei com medo de deixar-me levar pela vaidade e pela dissipação. Na noite seguinte, deixei a aldeia secretamente.

Chegada a Irkutsk

Assim, adiantei-me novamente pela estrada solitária e me senti tão leve como se tivesse tirado uma montanha de meus ombros. A oração me dava cada vez mais consolações. Às vezes, meu coração ardia de um amor infinito para com Jesus Cristo e esse maravilhoso ardor em ondas benfazejas se espalhava por todo o meu ser. A imagem de Jesus Cristo estava tão bem gravada em meu espírito que, ao meditar os fatos do Evangelho, era como se estivesse vendo com meus próprios olhos aquelas cenas. Ficava comovido e chorava de alegria; às vezes, sentia no coração tal felicidade que nem sei descrevera. Outras vezes, passava três dias distante de toda habitação humana e, com êxtase, sentia-me sozinho sobre a terra, eu, pobre pecador diante do Deus misericordioso e amigo dos homens. Essa solidão me fazia feliz e mais sensível ainda à doçura da oração do que em contacto com os homens.

Enfim, cheguei a Irkutsk. Depois de ter rezado diante das relíquias de Santo Inocêncio, eu me perguntava aonde iria agora. Não tinha vontade de ficar muito tempo na cidade porque era populosa demais. Fui andando pelas ruas a pensar. De repente, encontrei um mercador do lugar que me fez parar e me disse:
— És um peregrino? Por que não vens à minha casa?

Chegamos à casa dele, uma rica mansão. Perguntou-me quem eu era e eu lhe contei de minha viagem. Ao ouvir meu relato, ele me disse:

— Deverias ir até a antiga Jerusalém. Lá se encontra uma santidade tal que não se iguala a nenhuma outra!
— Irei com muita alegria, respondi, mas não tenho como pagar a travessia, porque é preciso muito dinheiro.
— Se quiseres, eu te indicarei um jeito, disse o mercador. O ano passado, eu mandei para lá um ancião, nosso amigo.

Caí de joelhos a seus pés e ele me disse:
— Olha, eu te darei uma carta para meu filho que está em Odessa e faz comércio com Constantinopla. Ele tem navios e te fará chegar até Constantinopla. De lá a sua firma te pagará a viagem até Jerusalém. Não é tão caro assim.

A essas palavras, fiquei louco de alegria! Agradeci muito ao meu benfeitor e, sobretudo, agradeci a Deus que manifestava tanto amor paternal para comigo, pecador endurecido, que nada fazia de bom, nem para Deus nem para os outros, e ainda comia inutilmente o pão alheio.

Fiquei três dias na casa desse mercador generoso. Ele me deu uma carta para seu filho. Agora vou para Odessa na esperança de chegar à cidade santa de Jerusalém. Mas não sei se o Senhor vai permitir que eu me incline diante de seu santo Sepulcro vivificante.


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